Rapariga conhece Rapaz. Rapariga apaixona-se por Rapaz. Rapariga conhece animal de estimação do Rapaz. É um homem vestido de cão. Rapariga questiona o amor pelo Rapaz. Good Boy usufrui desta descrição comum de romances (Boy meets Girl), e da sua simplicidade narrativa, para apagar a visão cor-de-rosa desta típica experiência cinemática, permitindo uma percepção diferente do próprio género, e desenvolver, assim, uma história profundamente desconfortável, maliciosamente divertida e burlescamente arrepiante sobre a forma como o poder e o privilégio conseguem esconder red flags dentro de uma casa de tijolos e sobre o ambiente lúbrico que abre as portas para relações abusivas.
Para Christian (Gard Løkke), um atraente jovem milionário com uma vida banal – excepto todos os elementos associados ao seu amigo e colega de casa, Frank (Nicolai Narvesen Lied), novamente, um homem vestido de cão que comporta-se sempre como um animal domesticado –, encontrar o amor parece um sonho distante, até conhecer uma jovem estudante, Sigrid (Katrine Lovise Øpstad Fredriksen), uma mulher inteligente, divertida e independente, que parece disposta a aceitar este mundo bizarro de Christian e a sua ligação com Frank, cuja existência é justificada, pelo seu dono, por um trauma de infância.
Good Boy desarma imediatamente a audiência na sua abertura, apresentando a sua premissa sem receio, medos ou vergonha, com Christian a cozinhar uma deliciosa refeição para Frank. É uma opening surpreendente pois a decisão comum seria guardar esta revelação para um twist de fim do primeiro acto. Contudo, Good Boy ladra instantaneamente, pronunciando a sua presença, o seu mood, e introduzindo um protagonista, supostamente, respeitoso, atencioso, solitário e com uma mente aberta; o típico sweetheart, homem rico com um coração d’ouro e um furry. A sua estranha rotina ocorre à luz do dia, demonstrando uma atitude de normalidade, destas duas personagens, perante este comportamento, assumido posteriormente como uma kink por Sigrid. As suspeitas desvanecem e são substituídas por curiosidade e gargalhadas. É suficiente para compreendermos simultaneamente a confusão desta jovem estudante, ao ser acordada por um arfar humano, como o seu regresso para esta invulgar relação. Afinal, tudo parece perfeito fora o homem vestido de cão.
O realizador norueguês, Viljar Bøe, retrata este optimismo fantasioso – frequentemente associado somente à sétima arte – com uma iluminação natural, desprovida de artificialidade cénica, escuridão ou sombras, recusando-se a pintar sobre o seu quadro singular. É um elemento técnico que enaltece o horror da sua história, aproximando esta experiência sinistra da nossa realidade, e expressando visualmente a tenebrosa segurança e o arrepiante conforto que suscita do poder financeiro. Aliás, o seu argumento salienta a maneira como estamos dispostos a abandonar o nosso controlo diante motivações económicas. A independência exibida por Sigrid, durante o seu primeiro encontro, é eventualmente vítima desta descoberta, quando a sua colega de casa menciona o valor monetário de Christian. Aproveito para referir que a saga 50 Shades of Grey serviu como uma base para esta narrativa sobre fetichismo, submissão, consentimento e comando. Será que o coração bate mais forte com um cartão de crédito? É Cha-Ching ou Ba-dump? O que é mais atraente: estabilidade ou química? É possível sequer encontrar amor ou estamos apenas a perseguir a nossa cauda?
A resposta é irrelevante. Ninguém merece sofrer numa relação. Apesar de algumas decisões frustrantes, Good Boy nunca julga Sigrid. Aliás, simpatiza com Sigrid, mesmo quando as suas acções ultrapassam a lógica do presente ou até quando o argumento arrisca perder a sua credibilidade e o apoio do público, Viljar Bøe oferece sempre empatia à sua heroína. Quando a audiência escolhe encarar estas protagonistas, entre outras, como ridículas ou como burras – uma atitude presunçosa de superioridade perante personagens que, obviamente, desconhecem estar num filme –, estão deliberadamente a ignorar a sua própria ingenuidade e o facto mais comum da nossa existência: todos fazemos escolhas estúpidas pela possibilidade de amor. Todos optamos, ocasionalmente, por ver red flags a preto e branco pelo esporádico conforto de um beijo. É muito mais fácil julgar ficção do que reflectir na sua verdade.
Good Boy é um filme que pede por festas enquanto mostra os dentes. Viljar Bøe tranca as portas para o exterior, aprisionando a história num espaço fechado e destacando as incríveis performances deste elenco – que assiste em estabelecer um ambiente natural e contido na sua violência –, para confrontar a audiência com a realidade deste conceito narrativo absurdo, abrindo somente as janelas para o seu final absolutamente devastador. É uma recordação que os humanos são sempre mais perigosos que os animais pois apenas as pessoas conseguem encarar relações como “marcar território”.