É longa a história desse monstro icónico de nome Godzilla. Ou, como se diz em terras nipónicas, Gojira. Foi nos anos 50, no difícil período pós 2ª Guerra Mundial, que a Toho Film Company produziu o seu primeiro filme. O monstro personificava o medo proveniente da criação de armas nucleares num país ainda a sofrer os eventos em Hiroshima e Nagasaki. A mutação de uma criatura, com semelhanças claras a um dinossauro, era fruto dessas explosões nucleares e a sua dimensão e força gigantesca uma metáfora para o terrível poder inserido na bomba largada nesses fatídicos dias.
Esta nova versão, após uma sequência que inclui mais de 35 títulos, volta ao período do fim da 2ª Guerra Mundial, num Japão totalmente destruído. Koichi (Ryunosuke Kamiki) regressa a uma casa destruída em Tóquio após cumprir o seu serviço militar como piloto da força aérea japonesa. Em desespero e sem razões para viver cruza-se com Noriko (Minami Hamabe) que deambula pelas ruas da cidade em busca de comida para si e para a filha. Esse encontro fortuito leva-o a um novo trabalho no mar e a um encontro inesperado. Das profundezas do oceano surge um monstro – GODZILLA – com um único objectivo, a destruição de todos com quem se cruze. Conseguirá o herói salvar Tóquio da ira de Godzilla?
Nas várias iterações de Godzilla há uma alternância entre herói e vilão mas um ponto comum: a inevitável destruição de tudo e de todos. É por isso natural a sua previsibilidade narrativa mas esse aspecto nunca retira o factor emotivo da equação. Apesar de ser reconhecido em todo o mundo às nossas portas, ultimamente, só têm chegado as versões originárias dos estúdios de Hollywood com qualidade muito variável mas ao qual falta algo muito importante – Tradição. Este regresso à tradição dos estúdios Toho é muito mais de que um revisitar ou ciclo natural económico – É uma bandeira de orgulho para o Japão. Takashi Yamazaki parece ser o maior responsável para este regresso triunfante de Godzilla ao escrever e realizar este filme.
Triunfante por diversos motivos mas o principal é por equilibrar a história clássica de redenção do herói, típica de Hollywood, com efeitos especiais impressionantes, um coração “a bater” por detrás de toda a fanfarra visual e, como não poderia faltar, a cultura e tradições japonesas, que dão outro ar e, acima de tudo, outra intensidade ao que vemos a desfilar à frente dos nossos olhos. É importante destacar os efeitos visuais pois estes foram feitos com 1/15 do dinheiro usado no último “grande” filme da Marvel – The Marvels (2023). Se acham injusta a comparação com este título nem precisamos de ir tão longe e usar os seus “irmãos” criados em Hollywood para estabelecer um paralelo. Todos, mesmo o Godzilla de 1998, têm orçamentos acima dos 100 milhões de dólares e contra estes factos não há argumentos. Existem sequências nesta produção que deixaram este crítico, literalmente, de boca aberta tal a espectacularidade do que desfila em frente dos nossos olhos – com destaque para o icónico ataque especial do monstro que, lentamente, o argumento revela em incrementos vistosos claramente inspirados em vários animes famosos da história da animação. Este cruzar de “beats” nipónicos e referências culturais eleva tanto o filme que é fácil perdoar algum menor cuidado em alguns planos e efeitos menos bem conseguidos. Mesmo esses efeitos têm um charme especial, especialmente o caminhar “atabalhoado” de Godzilla em terra, pois relembra o passado glorioso e o laborioso trabalho de um homem vestido com um fato que lhe deu origem, e afasta-o do digitalizado monstro perfeito imposto pelos tempos modernos. Ter a noção de manter esses pormenores só o torna ainda mais delicioso. Destaque final, neste capítulo, para o trabalho cuidadoso nas sequências de acção e na execução da equipa de duplos a relembrar, no nível de atenção ao detalhe, o mais recente Mission: Impossible – Dead Reckoning Part One (2023), do qual rouba descaradamente uma sequência em particular, mas não é isso mesmo o cinema? Já dizia Tarantino “I steal from every movie ever made” e quem somos nós para o contestar?
Apesar de o destaque ser o espetáculo, a acção e os efeitos especiais é importante notar o excelente trabalho de actores no seu conjunto. Os destaques óbvios são o herói Koichi, interpretado por Ryunosuke Kamiki, sempre intenso e emocional, às vezes demais mas é permitido um indulto tendo em conta a expressividade natural e a óbvia inspiração anime da produção e Minami Hamabe, como Noriko, introduzida como elemento cómico mas que rapidamente se transforma na inspiração e emoção do herói. E depois ter, mesmo nos papéis menores, actores “maiores” que carregam um gravitas imponente, atribuindo um carimbo de “herói” a todos os que se cruzam connosco no grande ecrã, é obra. Conseguir isto sem chamar os habituais atores japoneses sempre presentes nas produções americanas é também importante de frisar. Única nota negativa para a aparente manipulação de actores infantis para atingir os fortes níveis emocionais que consegue obter. Resulta, é certo, mas nem sempre os meios justificam o saldo final.
Aliando a tradição nipónica a um coração a bater, por detrás de todas as monumentais sequências de acção e efeitos especiais, este Gojira -1.0 é a fórmula perfeita para trazer o icónico Godzilla novamente para o palco cinematográfico mundial. E consegui-lo com uma fracção do dinheiro de tantas produções cinematográficas de Hollywood é a chapada de luva branca que o cinema mundial tanto precisava e a lição que a Tinseltown há tanto tempo merecia.
Ps: Não preciso de ser Nostradamus para prever um rápido telefonema de Hollywood a implorar a sabedoria do Sr. Takashi Yamazaki.