Glória é a primeira série portuguesa com distribuição mundial na Netflix, e essa foi uma responsabilidade tida em conta atendendo ao produto final. Optando por um evento histórico como pano de fundo da série, mas acrescentando elementos mais desconhecidos e surpreendentes a essa fase da história mundial, a produção decidiu de forma inteligente entre a segurança e o arrojo.
Em plena guerra fria, uma pequena cidade do Ribatejo torna-se num dos palcos mais improváveis da tensão entre americanos e russos, que procuravam por todos os meios controlar a Europa. No epicentro desta história está João Vidal (Miguel Nunes), um jovem com família ligada ao regime fascista, que é recrutado como espião do KGB depois da guerra colonial. Envolvido num jogo perigoso de caça ao rato, João precisa de todo o sangue frio para sobreviver às ameaças que enfrenta.
No ano em que a saga 007 com Daniel Craig ao comando chega ao fim, Portugal oferece o seu cheirinho no universo de espionagem, alimentando um ar pesado de thriller quando necessário, o elemento informativo e descritivo das referências históricas, e deixando o sol entrar pela janela quando os episódios pediam maior leveza. Esse é um dos pontos mais interessantes desta série, o equilíbrio entre entretenimento e tensão acumulada, e o factor de curiosidades ligadas ao período em causa, à guerra fria, guerra colonial, o papel de Portugal em tudo isto na transição da queda de António Salazar, que só por si transformariam Glória numa série mais documental, mas que agregando forças com o jogo de espionagem elevam a série para um patamar interessante no contexto policial/thriller histórico.
Tiago Guedes assume a realização de todos os episódios e fá-lo com uma graciosidade notável, nunca sendo gratuito no que nos dá, revelando um cuidado e acima de tudo um extremo bom gosto. Temos muitas vezes a sensação de estarmos a espiar também nós os acontecimentos, sentimo-nos parte da trama. Para este efeito ser sentido, Tiago precisou de um suporte dado por um elenco forte, com Miguel Nunes como destaque inevitável. O seu João Vidal transporta muito de Glória nos ombros, e o peso foi carregado com subtileza e classe. Miguel criou uma personagem intrigante, com várias camadas que lhe oferecem profundidade e que nos fazem torcer por ele, apesar de não ser de todo um típico “herói”. Os dilemas morais e acções mais questionáveis fazem dele um homem que ainda está à procura da sua paz.
Mas não só de Miguel Nunes é feito o enredo. Afonso Pimentel é um exemplo perfeito disso, comprovando que está destinado a estes voos internacionais. Sempre criativo, imprevisível e empolgante nas escolhas que toma para dar vida às suas personagens, o seu Gonçalo foi prova que se houver personagens bem escritas e dirigidas, os actores deste nível podem brilhar e servir uma história explorando todo o seu potencial. Pequenas participações de Ivo Canelas, Albano Jerónimo, Pepê Rapazote, Rita Cabaço, Joana Ribeiro, Victoria Guerra, são também pinceladas artísticas que permitem um acabamento de luxo à obra que é Glória. Relativamente ao elenco uma última palavra para Carolina Amaral, que será desconhecida de algum público ainda, mas não por muito tempo. Seja em televisão (ou streaming), teatro ou cinema, Carolina confirma que é uma das estrelas cintilantes da sua geração.
Há diversos motivos para se querer ver a primeira série portuguesa da Netflix, e todos mais fortes do que o facto de ser a primeira série portuguesa da Netflix. Não se trata de ver White Lines (2020) só porque Nuno Lopes é excelente, se me permitem a analogia, trata-se de assistir a história a ser feita, mas com os pés assentes no chão, com pessoas que estavam preparadas para que este momento chegasse, porque às vezes as coisas demoram a acontecer para que tenhamos tempo de nos preparar para elas, se acontecessem antes poderia ser uma oportunidade desperdiçada. Glória é uma oportunidade bem aproveitada, que esperamos venha a trazer frutos para o investimento real no produto português, e cada vez mais variado no seu género. Há capacidade para isso em todas as áreas.
Esta avaliação final não é feita atendendo ao clássico “para uma série tuga não está nada mal”, mas sim tendo em conta todo o catálogo disponível na Netflix, onde esta série se situa claramente na classe média/alta.