“The Gods have SPOKEN”
Marco Aurélio tinha um sonho de transformar Roma, em plena decadência moral e de costumes, numa república e trazer o poder de volta ao povo. Era sobre este nobre pressuposto que Gladiator (2000) assentava e que só fruiu, mesmo no final, com a vitória de Maximus Decimus Meridius (Russell Crowe) sobre o Imperador Commodus (Joaquin Phoenix) na arena. O “Happily Ever After” tinha um gosto amargo, com o sacrifício do herói de Roma, mas o êxito foi incontornável e carregado de premiações, entre elas 5 Óscares da Academia. Parecia ser uma tarefa árdua ressuscitar a saga de Maximus mas a vontade de o fazer nunca deixou Ridley Scott e Russell Crowe. Numa primeira tentativa de argumento, Maximus acordava no pós-vida, num mundo apocalíptico com chuva ininterrupta, onde uma interminável fila de espectros esperava o seu lugar, com o barqueiro, para passar o rio Estige. O argumento misturava referências ao panteão de deuses romanos e uma “missão” que lhe permitiria reunir com a sua família no Elísio e ter a paz que merecia. Tudo isto escrito pela mão de Nick Cave, sim o cantautor, mas que, segundo as suas palavras, estava fadado a nunca acontecer. Para grande pena minha.
Quando a poeira assentou, nos últimos anos, já Crowe estava fora dos planos e o foco caia sobre Paul Mescal como Hanno, um escravo tornado relutante gladiador por Macrimus (Denzel Washington). Para comemorar a vitória na Numídia do general Marcus Acacius (Pedro Pascal) os imperadores Geta (Joseph Quinn) e Caracalla (Fred Hechinger) criam os maiores jogos que Roma alguma vez viu. Hanno sonha vingar-se de Acacius, o general que lhe retirou tudo o que amava.
A sensação de déjà-vu é forte neste Gladiator II desde os primeiros segundos. Da entrada directa no campo de batalha, ao caminho trilhado pelo protagonista, de escravo a gladiador, Paul Mescal, das constantes referências à icónica banda sonora de Hans Zimmer, dos flashbacks descarados ao filme anterior e a repetição até à exaustão das suas melhores linhas de diálogo. A própria sinopse, anteriormente escrita, grita: “Eu sou uma cópia do original”. Tudo parece conspirar para revelar um caminho preguiçoso desta sequela mas Ridley Scott ainda parece ter uma palavra a dizer sobre o que significa ser entretido.
Não tem sido fácil o recente trajecto do realizador, com desilusão atrás de desilusão e a dúvida a instalar-se mesmo nos seus mais devotos seguidores, em que eu me incluo. Parece sempre haver um lado irrequieto nas suas obras, uma vontade de chocar e de criar reacções extremas nos espectadores que ultimamente têm sido de repulsa. O argumento de David Scarpa, Peter Craig e David Franzoni invoca esse espírito rebelde e irrequieto, sempre presente na sua obra, e amplifica-o. Nota-se, em maior grau, no ambiente decadente de Roma, que se alimenta dos excessos dos seus habitantes, nas extravagâncias da elite política e da sociedade. Os limites do politicamente correto parecem esbatidos mostrando uma sociedade livre e saudável, em certos aspectos, mas cruel e implacável noutros. O contraste com os mais desfavorecidos é gritante e ajuda na imersão do espectador nesta realidade e no que está em jogo para o povo de Roma. Não esperem é apuro histórico e realismo no que veêm nesta realidade alternativa de Roma segundo Ridley Scott.
Poder-se-ia falar dos combates de gladiadores variados, intensos e emocionantes onde uma colecção de animais selvagens improváveis e os níveis de derrame de sangue atinge volumes copiosos para cumprir a máxima de o fazer em duplicado na sequela. Ou da batalha naval inicial, pouco vista no cinema actual pela dificuldade a nível técnico e de orçamento, que revela desde logo o brilhante trabalho de efeitos especiais/design sonoro, ou no constante ataque aos nossos sentidos colocando sempre o espectador no meio da batalha com os heróis. É, no entanto, no seu elenco que esta visão fantasiosa de Roma atinge o seu apogeu. Desde logo, nos imperadores gémeos Geta e Caracalla, interpretados por Joseph Quinn e Fred Hechinger respectivamente, com rédeas soltas para se “perderem” no caos e loucura das suas personagens. Há um claro deleite no testar de limites do bom gosto, por ambos os actores, relembrando Calígula a espaços, se houvesse um remake feito em Hollywood. De Joseph Quinn já se espera o mundo mas Hechinger mostra ter argumentos para se bater de igual para igual com o seu “gémeo”. O maior destaque tem de recair em Denzel Washington, no papel de Macrimus, um astuto e misterioso esclavagista com uma ânsia de poder desmedida. Assim como a sua personagem também Denzel actua nas sombras para “roubar” o filme dos seus colegas. É o veículo perfeito para abraçar o gravitas do vilão clássico, tal qual Machiavelli nos subterfúgios usados para alcançar objectivos, mas também usando o seu carisma e charme para mostrar a sua visão do vilão moderno. Vemos as suas vestes, dignas dos mais altos dignitários romanos, mas parece antes invocar Alonzo de Training Day (2001) com o seu casaco de cabedal, cruz de prata ao pescoço e a julgar-se o dono do mundo. Soa estranho mas resulta, e de que maneira, até no modo camp como exagera o seu sotaque americano e os maneirismos que o caracterizam. Nota final ainda para Tim McInnerny, como o corrupto senador Thraex, que recordarei sempre de Black Adder (1982-1989), e que aqui mostra uma faceta bem diferente dos seus dotes cómicos, destilando desespero, medo e cobardia como há muito não via. Paul Mescal parece estar dentro deste exagero e grandiloquência quando cita um poema de Virgílio depois de esventrar um gladiador mas acaba engolido pela necessidade do filme de encontrar um herói irrepreensível e limpo de mácula. Pedro Pascal tem ainda menos sorte ao encarnar Marcus Acacius, um general desiludido com o presente de Roma, e por isso desprovido de qualquer intensidade ou agência na história. Connie Nielsen e Derek Jacobi são os únicos que regressam do filme original, e Lucilla tem as cenas mais emocionais mas pouco espaço para expandir a sua personagem enquanto o senador Gracchus não passa de um adereço de cenário. São estas as vicissitudes das grandes produções de Hollywood, a perda de grandes talentos nas entrelinhas.
No regresso às areias do Coliseu, Ridley Scott retorna ao palco no qual se sente mais à vontade, o do entretenimento puro e duro. Mas é no caos que semeia, na violência que reverencia e na maneira como subverte as expectativas do espectador, sem esquecer o legado indelével que pretende emular, que lhe dá a vitória final. Os deuses falaram e é um estrondoso – SIM