Uma sombra da qual nem tenta escapar
Criar uma prequela que conta a história da personagem mais cativante do último filme, parece uma excelente ideia. E na verdade, foi. A personagem merece essa atenção. Mas o que acontece é que se perde a mística por trás desse ícone, perde-se o impacto de deixar a sua origem à mercê das nossas imaginações. E por outro lado, existe o peso de corresponder a uma obra já existente, tentando ser um filme independente pelo caminho, ainda por cima quando essa obra já existente é considerada uma obra-prima do género. Resultado?
A nova entrada na saga Mad Max, Furiosa, conta as origens da heroína do mesmo nome, desta vez interpretada por Anya Taylor-Joy, onde podemos ver onde ela nasceu, como foi separada daqueles que a criaram, bem como a sua luta contra o senhor da guerra que a raptou, Dementus, que conta com Chris Hemsworth para lhe dar corpo e voz.
Na verdade, este papel da mítica guerreira tanto é de Anya como de Alyla Browne, a jovem atriz que dá vida a Furiosa quando esta é ainda uma criança. Isto tudo porque Alyla ainda carrega o filme até quase metade da sua duração, o que significa que não vemos Anya até essa altura. Há que se dizer que ambas estão a par uma da outra, alimentando-se mutuamente ao criarem a mesma personagem mas claramente em fases diferentes. Alyla cria uma Furiosa já astuta e corajosa, mas ainda muito curiosa, ao contrário de Anya que assume as rédeas quando Furiosa não tem outra escolha senão ser um poço de silêncio para aguentar e se esconder deste mundo hostil todos os dias. Anya, principalmente, retira muito e bem do que Charlize Theron apresentou em 2015: os olhares fortes e faladores, a postura impenetrável e o silêncio avassalador que tanto deram a Furiosa e que a tornaram na heroína que é. Numa outra adição ao elenco, Chris Hemsworth claramente deleita-se neste papel, onde espalha o seu carisma não só para entreter como também para deixar um clima mais desconfortável em partes onde revela o mais macabro do seu vilão, entregando assim um antagonista interessante de ver e provando que devia fazer de mau-da-fita mais vezes.
Agora, o problema deste filme jaz no facto de que vem ligado com um cordão umbilical a Mad Max: Fury Road (2015). Tanto por ser uma prequela de uma personagem nascida nessa obra, como por ser a seguinte entrada numa saga que a ultima coisa que viu foi genialidade e um evento único na vida. A realização e argumento ainda estão a cabo do mesmo senhor que criou tudo isto, George Miller, mas claramente que algo aconteceu, porque existem diferenças notórias. A direção do filme continua precisa, pratica e rápida. Informa o que tem a informar, cada plano e cada corte mostram o que é preciso, mas de alguma forma esta ligação simbiótica entre estes dois filmes perdeu identidade e Furiosa tornou-se algo mais banal e mundano. A essência única que fez de Fury Road algo tão raro, os frames acelerados, a montagem frenética mas ao mesmo tempo perspicaz, a estranheza de um super zoom, mesmo a existência de mensagem e simbolismo nos silêncios, nas ações, nos olhares, tudo isto foi perdido neste cordão que une os dois filmes.
Existe muito texto em Furiosa, demasiado até. Tudo é explicado, seja em diálogos, narrações imensas, ou mesmo até personagens que só servem para exposição verbal. Mesmo o lore, o worldbuilding, é demasiado explicado. Perde o encanto e o mistério do desconhecido. Já nos filmes anteriores tínhamos visto ou ouvido falar das fortalezas da Wasteland, bem como os seus lideres e gangues, mas aqui tudo é explicado, o que torna a experiência bem mais vazia e desprovida da nossa própria imaginação. Até o texto existente é bem mais banal e contemporâneo, naturalista até, que o de Fury Road, que tinha o seu diálogo meio “shakespeariano” e bem mais temperado. Distinguia-o o fator de haver poucas falas e essas serem tão bonitas e recheadas de significado, apropriadas a este mundo pós-apocalíptico e extravagante.
Das maiores tristezas que vêm com isto é o facto de que o subtexto é muito mais fraco do que o de Fury Road, principalmente para os temas que fazem dos filmes especiais. Para muitos estes filmes podem ser apenas ação bombástica e designs estranhos, mas o que faz de uma história algo especial são as conversas que tem connosco através daquilo que nos deixa para questionarmos. A maioria dos temas são partilhados pelos dois filmes: exposição do fascismo, fanatismo, crenças, redenção, etc. Tudo isto é partilhado pelas duas histórias, mas o que as distingue é que o filme anterior tratou de tudo isto no subtexto, apresentou-nos o mundo e deixou-nos livres para o montar na nossa cabeça, para entender as suas idiossincrasias e recheá-lo com as nossas ideias. Furiosa envolve muito mais politiquices aborrecidas, mas mesmo essas politiquices estavam presentes em Fury Road, simplesmente subentendidas em ações, em decisões, em planos e montagens. Não tínhamos alguém a explicar como funciona o espetro geopolítico da Wasteland, como se fosse aquele amigo que não consegue ver o filme ao nosso lado, sem nos explicar tudo o que se está a passar.
Admito que o filme fala sobre uma coisa interessante não tão presente em Fury Road, que é a constante que o amor e a guerra são, pois nunca deixarão de estar presentes na humanidade. Ambos. Em sintonia. Mas Furiosa também perde por ter uma protagonista que nunca é questionada como a heroína que é, comparando com Max Rockatansky que é constantemente posto em causa pelas suas ações e por quem é, em praticamente todos os filmes. Existe ainda uma personagem masculina com quem Furiosa passa algum tempo, que relembra Max, tornando esta diferença bastante mais evidente. Neste mundo inóspito, ajuda muito ter um protagonista que não é tão preto no branco, principalmente quando a história em si não se mostra necessária e acaba por deitar abaixo o mistério que envolvia Furiosa no filme anterior. Metade do interesse por ela nasceu das questões “Quem é ela? De onde veio? Como se tornou nesta guerreira?”. Quando são respondidas desta forma, essa metade do interesse desvanece-se.
Há que abordar a parte técnica do filme, e mais uma vez a sombra de Fury Road é mais que presente, tendo em conta que Furiosa utiliza muito mais CGI (e pior), criando assim um mundo que parece menos palpável, com menos textura. As mesmas estradas e desertos apresentados em 2015, pareciam mais reais, mais sujos, mais extraordinários. E isto afeta naturalmente as esperadas cenas de ação, que sofrem por não terem o mesmo impacto prático com que foram executadas em Fury Road. É muito triste quando o que eram 80 a 90 por cento das cenas serem práticas há 9 anos atrás, são agora 80 a 90 por cento CGI. As coreografias e planos de ação não seguram nem uma vela ao que foi apresentado anteriormente na saga. Tudo bem que a ação não tenta, nem tem de tentar, superar o que Fury Road fez, como se tivesse de ser maior e mais rebuscada. Mas deveria ter mantido a integridade técnica bem como a sua alma.
Mad Max: Fury Road é a sombra de Furiosa (ironicamente, tendo em conta que Furiosa eclipsou Max no seu próprio filme). Daí estar tão proeminente a obra-prima de 2015 nesta crítica. Gostaria que não fosse assim, mas o próprio filme não nos deixa esquecer que a seguir a esta história vem Fury Road. O filme admite esta sombra ao terminar com planos do antecessor durante todo o genérico final, realçando ainda mais o quão longe está dele em termos de qualidade. Furiosa não exige que se veja Fury Road para ser entendido, mas para sentir ou até perceber o último plano, sim é preciso. É desta forma que se encontra o peso da sombra. Se Fury Road não existisse, Furiosa seria um grande filme.