Fresh (2022)

de Rafael Félix

Alguém disse uma vez que “o terror é um género canibal” pois está constantemente a alimentar-se de si mesmo e das suas próprias construções para se ir transformando incessantemente. Dificilmente iremos encontrar um filme mais apropriado a esta expressão que Fresh, longa-metragem da estreante Mimi Cave com um guião de Lauryn Kahn – esta apenas com um crédito em seu nome neste formato –, que explora o inferno que é o online dating quando Noa (Daisy Edgar-Jones) se vê a cair num romance que parece demasiado bom para ser verdade com Steve (Sebastian Stan), que é, citando a personagem de Jojo T. Gibbs, “um sonho para qualquer rapariga branca heterossexual”, mas que tem todas as red flags possíveis na existência, ao não ter redes sociais e ao convidá-la para um fim-de-semana fora após dois encontros.

Se essa visão irónica – e terrivelmente documental – sobre a dificuldade que é ser uma mulher em plataformas online de encontros (ou no geral da internet) toma a primeira meia-hora do filme – ao ponto dos créditos de abertura só aparecerem nessa altura – de uma forma interessante, ainda que não particularmente nova, a partir daí Fresh começa a ser vítima das suas próprias influências.

O terror é realmente um género que está constantemente a auto referir-se, já falámos sobre isso, mas algumas escolhas artísticas e a grande maioria do guião são uma enxurrada de lembranças a filmes e cenas que já vimos antes, e dos quais Fresh não só não se consegue libertar, como não faz com eles nada de novo.

Apesar das boas atuações, principalmente de Daisy Edgar-Jones que tem aqui a sua primeira oportunidade de brilhar pós Normal People (2020) – num papel com substância suficiente para se conseguir manter indecifrável sem nunca perder um pingo de carisma –, há demasiado: Hannibal Lecter mas sem a presença de alguém como Brian Cox ou Madds Mikkelsen (ainda o melhor Lecter);  Martyrs (2008) mas sem o choque de terror corporal capaz de incapacitar até o mais insensível dos humanos; ou especialmente Get Out (2017). Embora haja claramente uma narrativa social a ser desmontada sobre a forma como a mulher é literalmente feita para alimentar homens e todo o sistema patriarcal, tornando-se um produto para venda a pessoas obscenamente ricas, fá-lo sem a sagacidade, a astúcia ou a piada com que o filme de Jordan Peele o faz. Tudo isto torna Fresh apenas uma versão menos feliz de filmes que já vimos muito melhor concretizados. Também não abona a seu favor que tenha quase duas horas numa história e tom que funcionariam muito melhor em 90 minutos. 

Há talento suficiente atrás da câmara, como o Pawel Pogorzelski, director de fotografia habitual de Ari Aster, ou a realização muito confiante de Mimi Cave para fazer um trabalho mais interessante que aquele que Fresh acabou por ser, mas o guião atabalhoado de Lauryn Khan tropeça nas suas próprias referências demasiadas vezes, atrapalha-se no terceiro ato e deixa no ar a ideia que Mimi Cave pode vir a fazer coisas muito peculiares no futuro, se estiver armada com páginas um pouco melhor trabalhadas.

2.5/5
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1 comentário

Ju 5 de Abril, 2022 - 14:58

Há muitos filmes de terror que advertem para o mundo dos perigos dos encontros online, este é realmente interessante, pois também mostra como as meetings/dates em pessoa não são necessariamente mais seguras. Excelente review!! Subscrevo cada palavra!

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