Four Daughters conta-nos a história de vida da matriarca tunisiana Olfa Hamrouni e das suas quatro filhas: Rahma Chikhaoui, Ghofrane Chikhaoui, Eya Chikhaoui e Tayssir Chikhaoui cuja vivência foi fortemente abalada e questionada pelo desaparecimento de Rahma e Ghofrane, as filhas mais velhas de Olfa, que decidiram abandonar a família para se juntarem ao Estado Islâmico.
Neste documentário a história desta família de mulheres é apresentada aos ecrãs de forma ímpar, na medida em que Kaouther Ben Hania, realizadora do filme, alia a representação das protagonistas da história com a representação de atrizes: Nour Karoui e Ichraq Matar interpretam Rahma e Ghofrane, respetivamente, e Eya e Tayssir contam-nos a sua história in loco a par com a sua mãe. Aliás, a vida de Olfa conta com dupla caracterização: a atriz Hend Sabry dá o corpo e a alma para “viver”, compreender ou pelo menos tentar compreender o que Olfa atravessou – a título de exemplo, há cenas em que uma fala é dita por ambas ao mesmo tempo e isso sobreleva o poder, a possança das palavras verbalizadas, o que nos deixa, muitas vezes, arrepiados.
Esta dinâmica para as “performances” dos papéis, – apenas aplicável às atrizes, pois quem viveu não “performa” o que viveu – sendo que “performance” tem mesmo de ficar entre aspas porque o verbo “performar” é eufemístico e faz pouco jus às atuações de Nour, em especial, Ichraq e Hend, funciona de uma forma eximiamente única (passe a redundância, porque se urge) deixando o espectador estonteado: a vivência do enredo está alicerçada no diálogo que hospeda em si a partilha de experiências raivosas, traumáticas, felizes, ingénuas e violentas, enfim, íntimas por parte da família, por um lado, e, por outro lado, pela escuta e vontade ativas e empáticas para o entendimento destes acontecimentos pelas atrizes.
Através da família Hamrouni vemos a vivência do mulherio a acontecer, a vivência das mulheres especialmente na cultura árabe, existência essa que se repercute, de forma mais evidenciada nalgumas sociedades e menos evidenciada noutras, na vida vivida (passe novamente a redundância, que se urge mais uma vez para os efeitos de sentido a transmitir) pelas mulheres em todo o mundo que é marcada pelo facto desse mundo ainda estar entretecido nas teias do patriarcado e principalmente ainda ser penetrado pela violência, e estar imbuído nela com as suas manifestações voluntárias e involuntárias a habitarem todos os lugares: a escola, as amizades, o trabalho, etc., mas especialmente, como o filme o demonstra, as famílias.
Talvez possa dizer-se que a violência é omnipresente não inatamente, mas porque o Homem deixou que ela se tornasse e Four Daughters expõe essa ubiquidade da violência de modo protervo e ao mesmo tempo e paradoxalmente de modo preclaro. Essa mostra toma a forma de um pseudo-clímax, – no sentido retórico que a palavra tem de gradação crescente – pois as experiências violentas (neste caso, nomeadamente as violentas) vividas por esta família atravessam-nos indiscriminadamente: até que quando pensamos que nos pudemos estar a aproximar do momento em que a violência vai atingir a sua manifestação máxima a virga-férrea parte-se estrondosamente aos bocados com as palavras de Eya, com a fala que termina o filme.
Four Daughters está impregnado de primeiros planos que nos mostram os rostos de Eya, Tayssir, mas sobretudo de Olfa: um rosto cujas linhas de expressão falam, não mentem nada, cujos olhos nos adentram a alma sem que tenhamos autorizado primeiro. Também encontramos primeiríssimos planos que focam olhos e olhares e lábios, mormente os das irmãs e da mãe. Ademais, a cor e luz azuladas iminentes no filme intensificam as cenas transmitido a sensação de que as aprofundam e os espelhos, que parecem inundar qualquer que seja o espaço, aparentam dobrar ou até triplicar a dor das faces femininas do matriarcado Hamrouni.
No fundo, não há louçainha material nem imaterial, isto é, adorno que pretenda atenuar a história: a sua simplicidade desemboca irremediavelmente para o foco na vida destas mulheres, transportando-nos distintamente para junto das suas conversas extraordinárias e espontâneas, para junto da sua vida na medida máxima que um filme o permita fazer. Os únicos aspetos passíveis de apontar – que não constituem erros, atenção – são alguns episódios das suas vidas que necessitavam de mais tempo: foram bem explanados, mas a sua densidade requeria presença mais notória nos ecrãs.
Four Daughters estica abundantemente os limites de humanização que são possíveis a um filme ao aproximar-nos tanto da vida de Olfa e Tayssir e Eya e por evocação de Ghofrane e Rahma que chega a assustar. Concretiza-se enquanto documentário por excelência: é a homenagem a Olfa acima de tudo, à sua força e legado; é um ato de luta, luto e resiliência em forma de película.