Forever a Woman (1955)

de Pedro Ginja

Como um templo na noite, os corredores quedam-se mudos, para melhor me atormentarem.

Kinuyo Tanaka, conhecida pelo seu trabalho como actriz para os grandes mestres japoneses Mizoguchi, Ozu, Naruse e, um pouco mais tarde na sua carreira, com o grande Akira Kurozawa, não é alheia ao processo criativo, que venera, e decide arriscar um novo caminho na arte. Com centenas de filmes como actriz teria sido bem mais fácil manter esse estatuto de estrela, com a arte de representar, mas havia uma vontade de ser referência para além da norma instituída nesse tempo. Foi apenas a segunda mulher a realizar e a primeira a activamente trabalhar na indústria patriarcal japonesa do pós-guerra – uma verdadeira “trailblazer”. Tal feito não a protegeu de elevado criticismo e menosprezo, perante os mestres masculinos, e onde era constantemente acusada de imitação de estilos e temáticas. Ora, apenas alguém que nunca viu um filme de Tanaka, ou que tem azia ao seu enorme talento, poderia dizer tal impropério. A minha ignorância perante este portento do cinema japonês chegou agora ao fim.

A porta de entrada na sua carreira como realizadora teria sempre de ser este Forever a Woman (Para Sempre Mulher) de 1955, que acompanha a vida de Fumiko Shimojo (Yumeji Tsukioka), claramente inspirada na vida e obra da grande poetisa tanka – Fumiko Nakajo. Para além da sua vida doméstica, partilhada com duas crianças e um marido infiel, vive somente para a sua paixão pela arte da poesia. O sucesso literário vem acompanhado com a degradação da sua vida pessoal, actuando quase como um catalisador para o seu processo criativo, e o questionar do valor da sua existência.

O caminho de um poeta é, geralmente, um de solidão. O calvário, a que é sujeito na sua vida diária, é a gasolina para o acto de criação, na forma de um poema tanto melhor quanto a intensidade do seu sofrimento. Juntando a isto um tempo, em pleno pós-guerra no Japão, de dificuldades económicas e de menosprezo das qualidades femininas e está criado um ambiente pesado, de profundo desespero para Fumiko. O argumento, também no feminino, escrito por Sumie Tanaka reflecte sobre a inevitabilidade do sofrimento da sua protagonista de um modo tão belo que nos questionamos se é válido retirar tanto prazer do seu infortúnio. Sentimos também que entramos num mundo vedado ao homem, normalmente oblívio ao sexo feminino, como um segredo que parece estar tão perto de finalmente ser revelado, mas que sempre nos continua a iludir. Quando parece previsível o destino e as reacções das personagens, com destaque claro para Fumiko, tudo é posto em causa e o que parecia casto, torna-se obsceno, o desejo utópico torna-se carnal, sem ser nunca ser objectificado, e o que era a sua verdade, como indivíduo, adquire um significado inesperado. A imensidão de leituras, principalmente do sofrimento, da inevitabilidade da morte, da condição feminina, do acto de criação e do amor (sim, sempre o amor como ponte entre todos) revelam um talento extraordinário para a escrita de Sumie, que bebe também do talento dos poemas tanka escritos pela poetisa sobre o qual a história se baseia.

Kinuyo merece igual crédito pela maneira como revela, em incrementos de crescente subjectividade, a viagem de redenção de Fumiko. De uma vivência terrena miserável para um abismo de desespero nas sequências passadas no hospital, muitas vezes representado por corredores longos e escuros, desprovidos de qualquer conforto. Parte-nos o coração a sua viagem, o arrastar dos seus pés em direcção à luz e o vislumbre implacável da morte, no fim do caminho. Fumiko surge sempre entre grades, aprisionada em espaços exíguos ou por detrás de portas e janelas fechadas, por escolha própria e que os seus entes queridos tentam, em vão, abrir. Estes, e muitos outros, apontamentos subtis na narrativa transparecem uma profunda sensibilidade e “faro” para conduzir o espectador nesta viagem da sua protagonista, como apenas uma grande mestre o poderia fazer.

A completar este triunvirato no feminino temos a magnífica Yumeji Tsukioka que encarna a trágica persona da poetisa Fumiko com um abandono tal que nunca é menos que glorioso. O impacto maior surge nos momentos de maior angústia, em que se sente a sua feminilidade em causa, devido às consequências do devastador impacto do cancro, mas, de igual maneira ou ainda mais, quando abraça a desfiguração corporal, como sinal de uma nova noção do feminino, livre de noções objectivas facilmente expressa em palavras ou equações matemáticas de X ou Y.

Os adjectivos lisonjeiros escorrem facilmente por todos os envolvidos nesta obra pois a paixão demonstrada é de tal forma avassaladora que damos por nós assoberbados de emoção, em diversos momentos, com esta torrente de beleza. Forever a Woman, para muita pena minha, é um dos tesouros mais bem guardados da cinematografia japonesa. Kinuyo Tanaka rouba a austeridade e o estilo formal dos seus conterrâneos masculinos, mas infunde-os com um coração moderno, feminista e independente dos códigos e regras morais da época. Uma obra-prima de grande coragem e que merecia outro destaque na história do cinema mundial. Ainda vamos a tempo de corrigir esta injustiça.

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