Não é todos os dias que se encontra um filme que une uma história absolutamente essencial e uma técnica cinematográfica irreverente. Filmes que privilegiam o seu enredo, por norma optam por uma realização sólida, mas discreta, que não roube a atenção da história. Já filmes que procuram inovar no domínio estético e técnico, raramente têm uma trama memorável, daquelas que comovem e nos fazem reavaliar a nossa perceção das coisas.
Claro está que os grandes filmes da história do cinema unem todos estes componentes de forma exímia, criando marcos de visualização obrigatória não só para adeptos da sétima arte, mas para a cultura de qualquer ser humano. Flee – A Fuga é um desses filmes.
Nomeado para os Oscars de Melhor Filme de Animação, Melhor Documentário e Melhor Filme Internacional, Flee fez história como o primeiro filme a arrecadar nomeações neste peculiar conjunto de categorias. O documentário, realizado pelo dinamarquês Jonas Poher Rasmussen, recorre à animação para recriar o passado, tal como é contado por Amin Nawabi, o nome fictício adotado pelo protagonista por razões de segurança, de 36 anos no momento da gravação, e agora residente na Dinamarca, que fugiu do Afeganistão nos anos 80′, durante a insurgência do grupo de guerrilha dos Mujahideen que originou a primeira guerra civil no país. Amin e a sua família conseguem chegar até à Rússia onde iniciam o seu percurso enquanto refugiados, cujas dificuldades e caráter desumano se vão revelando ao longo do filme.
Se a realidade de um refugiado de guerra, completamente devastadora e permanentemente atual, contada na primeira pessoa, não for suficiente para capturar a atenção do espectador, então o estilo e originalidade da produção fá-lo-ão certamente. Em Flee, Rasmussen mistura pilares do género documental – como a recriação de eventos reais e o talking-head – com momentos casuais dos bastidores e episódios da vida atual de Amin com o seu parceiro, enquanto os dois procuram mudar de casa, e ainda imagens de arquivo de coberturas jornalísticas (as únicas em live-action). Nada disto é novidade num documentário; no entanto, Flee adiciona a camada da animação, reproduzindo todos estes momentos que aconteceram mesmo – e cujo vídeo existe certamente – em desenho animado, casado com áudios das gravações reais. Esta conjugação permite ao filme proteger as identidades dos envolvidos, apenas incluindo as suas vozes reais e desenhos seus em 2D (cuja semelhança com o verdadeiro nos é impossível de verificar), sem nunca descuidar a conexão pessoal que o género documental proporciona por excelência.
Acima de tudo, esta é uma abordagem verdadeiramente original deste tipo de filme, arriscada e rica em visão cinematográfica. Considerando, ainda, que larga parte das cenas do filme concernem à infância de Amin no Afeganistão, a escolha de os animar transmite um certo ar de inocência que evidencia a injustiça e crueldade destes conflitos para com as crianças em particular.
A história de Amin é, no entanto, sempre colocada dentro de um contexto que o excede, pondo em evidência a vastidão do impacto da guerra e o número impressionante de pessoas afetadas. Ao longo do filme são-nos apresentadas inúmeras outras personagens cujos percursos são ainda mais custosos que o do protagonista, destacando-se uma sequência num edifício de detenção na Estónia com condições atrozes. A animação, que se torna cada vez mais expressionista à medida que a tensão no filme cresce e explode, é nesta sequência cortada com imagens de arquivo, reais, deste mesmo edifício e dos seus prisioneiros, funcionando como um figurativo murro no estômago de qualquer espectador.
A arte de Rasmussen está na sua habilidade de retratar uma crise tão impactante como esta, sem nunca negligenciar a idiossincrasia do seu protagonista, ancorando o drama do filme sempre nas suas emoções pessoais. Há, da sua parte, uma escolha consciente e deliberada de incluir uma linha narrativa sobre a orientação sexual de Amin, através de cenas que exploram a sua autodescoberta na infância e adolescência, numa cultura muçulmana particularmente conservadora e de que forma isso ainda hoje se reflete na relação com o seu parceiro. Rasmussen abre, no seu filme, um merecido espaço para esta faceta da vida do seu protagonista, abordando-a sempre com uma enorme delicadeza e compaixão. O conflito interior com a sua própria identidade vem, desta forma, completar a literal guerra exterior que Amin vive no seu dia-a-dia, conferindo a Flee um caráter especialmente completo e íntimo que muitas vezes se perde em filmes sobre temas tão globais e abrangentes.
A belíssima animação e a estrutura do filme – com a revelação lenta, mas bem balançada de informação, aliada a uma dose saudável de reviravoltas e surpresas, que não serão neste artigo reveladas para quem ainda não teve a oportunidade de experienciar este documentário – são eficazes no transporte do espectador por uma viagem que tem tanto de emocionante como de revoltante. É difícil sair de Flee indiferente – quer se valorize uma história cativante ou uma longa-metragem realmente bem feita, este é um filme a não perder nesta época de prémios.