Takashi Miike é a definição de um cineasta insano. Em 32 anos, o prolífico artista japonês realizou cerca de 112 produções, incluindo longas-metragens, séries, vídeos musicais e curtas-metragens. Clint Eastwood grunhe de inveja! O seu nome continua a surpreender nos créditos finais, principalmente pela sua capacidade de ridicularizar a frase: “Qualidade acima de Quantidade”. Para Miike, essa expressão é absurda. Ambas são possíveis. Com uma lista de obras audiovisuais suficiente para preencher um armário, seria uma conclusão lógica assumir que estas criações caem na repetição. Takashi Miike ri-se dessa assunção.
Hatsukoi ou First Love (título globalizado) segue Leo (Masataka Kubota), um jovem pugilista no repentino fim da sua carreira, que, ao deparar-se com Yuri (Sakurako Konishi), uma acompanhante toxicodependente em fuga pela sua vida, decide ajudar-lhe a escapar dum esquema de tráfico de droga. Perseguidos por um polícia corrupto, uma assassina enviada pelas tríades chinesas e um Yakuza, a dupla tenta sobreviver uma noite maníaca em Tóquio.
O familiar evapora-se imediatamente nas mãos de um realizador que enfrenta uma sinopse acerca de encontrar o primeiro amor, com uma fome maníaca por carnificina e destruição. Para Miike, nada diz First Love como violência, drogas, corrupção e a Yakuza. Natural para um artista movido pelo aborrecimento – o cineasta admitiu alterar cenas vitais dos seus filmes durante as filmagens simplesmente por tédio – e responsável por inúmeras obras controversas, sendo possivelmente dos poucos realizadores com metade da sua filmografia a sofrer de censura pelo mundo inteiro. No seu 105º crédito como realizador, Miike humilha Romeu e Julieta com esta insana obra absurdamente hilariante que representa o amor como uma nuvem de heroína. Não, não estou a afirmar que First Love é superior à clássica história de Shakespeare. Ainda assim, acredito que o celebrado autor provavelmente ficaria encantado pela ideia de dois jovens apaixonados a batalharem a Yakuza.
Unidos por um encontro acidental, vinculados por uma sensação partilhada de solidão perdida. “Porque sobes sequer ao ringue?” pergunta o treinador a um Leo, sem resposta ou sentido de euforia pela sua vitória. O jovem entrega o seu corpo à violência, sendo esta o seu único destino ou propósito. Aliás, a única finalidade que encontrou pelas ruas de Tóquio, como um órfão. “É tudo o que sei fazer.” responde mais tarde a um jornalista. A sua vida é esmurrar ou ser esmurrado. Simples. Yuri encontra refúgio no seu olhar e na sua força. Uma jovem vendida pelo seu pai, encaminhada para a sua única fonte de escapismo de uma cruel realidade, que resultou na sua toxicodependência; os momentos sóbrios revelam-se como pesadelos, interrompendo o seu dia com memórias dos abusos do seu pai.
Apesar do ambiente obscuro que paira pelo ar deste duo desorientado, Miike prossegue em exibir o seu sentido de humor diabólico durante o percurso narrativo, desde múltiplas ridículas tentativas de assassinato até uma cabeça decapitada a rebolar pelo chão, ainda com os olhos a piscar, confusa com a ausência do resto do seu corpo. Nesta atmosfera destaca-se um elenco fantástico, salientado pelas suas estranhas personagens como Shota Sometani a interpretar o patético traidor criminoso, Kase, e Becky como Julie, a assustadora namorada de um membro da Yakuza que procura vingança. Romance, comédia, crime, ação, thriller e até breves instantes de terror. Tudo numa noite surreal conjurada pelo destino.
First Love mergulha no absurdo das suas circunstâncias narrativas com caráter e orgulho, apresentando incríveis sequências de ação, diversos momentos absolutamente divertidos e um ambiente criativamente intoxicante. Entre o sangue e a obscenidade, Miike também captura uma impressão honesta acerca do acto de apaixonar, a sua liberdade sensorial e as conflituosas emoções que perseguem dois jovens. Para uma longa-metragem acerca de um romance confinado ao caos, a dupla mantém-se maioritariamente sem palavras ou instantes apaixonantes. Nem um beijo. O mundo à sua volta reflete a sua conexão emotiva; um espaço onde todos lutam somente pela sua própria pessoa, ignorando os restantes. Esta é uma relação com base na proteção, no cuidado e propósito que oferecem um ao outro. As suas ações determinam o desejo que ambos desconhecem enquanto desaparecem numa noite de balas. Amar é desaparecer num sentimento. É enlouquecer. Takashi Miike é o cineasta perfeito para ilustrar essa loucura.