Um dos indie dramas mais esperados do ano, First Cow tentou ao máximo ter uma estreia nas salas, mas dada a falta de colaboração da malta que sentia que não podia continuar a viver sem uma festa de funk no Tamariz, teve de ser atirado para as plataformas de streaming. Não que o filme alguma vez viesse a estrear em Portugal, mas podemos fazer o paralelo com a estupidez americana, visto que o “estúpido” é, sem sombra de dúvida, uma espécie internacional.
O novo trabalho de Kelly Reichardt gira à volta da amizade de Cookie, um cozinheiro que viaja pela América em construção do século XIX à procura de trabalho, e King-Lu, um imigrante chinês a tentar a sua sorte na vida vagueando pelo estado do Oregon, após o par começar um negócio de venda de bolos feitos com leite roubado à vaca do líder local.
Não vou andar aqui outra vez a praticar o meu desporto de eleição “lamber as botas à A24” – futura modalidade olímpica pelo que ouvi dizer –, porque a quarentena não me deixou em grandes condições físicas para qualquer modalidade desportiva. No entanto, First Cow é realmente mais uma aposta ganha pela distribuidora.
De lentidão hipnótica e algumas vezes a cair num ligeiro soporífero, o filme envolve-se por completo nas florestas desta América ainda em pleno processo de colonização, ou como será mais correto chamar “atirar os índios para fora daqui que eu quero fazer um churrasco”, para contar uma história de amizade que é, em partes iguais, simples e intrigante.
Pleno de simbolismo e mensagens subliminares sobre a colonização e processo de opressão pelo homem branco ou sobre as fases iniciais daquilo que se viria a chamar o “sonho americano”, que tinha tanto de hipócrita na altura como tem agora, First Cow é acima de tudo uma história que se assenta em pleno nos seus dois principais intérpretes, na quietude e simplicidade de um, e na ambição e lealdade do outro. Um duo estranho, reunido pelo acaso, à procura de um sonho comum numa terra que, tal como os seus personagens, parece também deixada ao acaso e sem saber que rumo levar.
É uma exploração de uma América que nem sempre vemos. Uma América rural, pitoresca, mas brutal e impiedosa, ao mesmo tempo que serve muito bem o silencio e paciência da narrativa que quer passar, sempre com um olho no passado e o outro virado para o presente. A beleza das suas paisagens e como funcionam de pano de fundo para uma história mais íntima é de cortar a respiração, no entanto o ritmo pode ser um obstáculo visto que não é um filme propriamente curto, já tocando as duas horas. É difícil dizer até que ponto isto “não é defeito, é feitio” visto que os filmes de Reichardt costumam ter estas facetas e toda a atmosfera de First Cow também propõe que a duração e ritmo sejam como são, mas garantidamente precisa de ser visto no mood certo, caso contrário o mood vai passar a ser pontificado com sonoros ressonares – ou mugidos, se me permitem a piada bovina.
De modo geral, First Cow é exatamente o que quer ser, e aquilo que se lhe pode apontar como defeito, pode também ser entendido como algo inevitável para que a história funcione nos parâmetros a que se propõe. Um snapshot de uma América arcaica, mas estranhamente atual, paciente e voraz em que a quietude das suas personagens se mistura com as calmas paisagens florestais que os adornam, pintando uma história de amizade que merecia ter sido vista no grande ecrã.