Revisitar o passado é a nossa introdução ao mundo de Enzo Ferrari segundo Michael Mann. Através de filmagens de época vemos excertos de algumas das suas corridas com a equipa da Alfa Romeo em plenos anos 20 usando a imagem de Adam Driver a cobrir a cara do fundador da Ferrari. Um sorriso de orelha a orelha surge quando ultrapassa a meta e vence servindo como prenúncio do que há-de vir. Um futuro brilhante e histórico responsável pela criação de uma das mais reconhecidas marcas mundiais. Mas como é óbvio não há brilhantismo sem uma dose de “pedras” no caminho que nos moldem para o bem e para o mal.
É para uma dessas “pedras” que Ferrari nos transporta ao acompanhar os eventos do verão de 1957, quando o império criado por Enzo (Adam Driver), pós- 2ª Guerra Mundial, entra numa profunda crise económica. A solução aparenta ser participar, e vencer, a mítica Mille Miglia, uma corrida que se estende por vários dias e atravessa grande parte de Itália. Enquanto a sua vida profissional parece caminhar para o abismo também a sua relação com Laura (Penélope Cruz) é posta à prova com a descoberta de segredos obscuros do seu passado.
Michael Mann regressa após um longo período de ausência das salas de cinema. Foram precisos 8 anos para este Ferrari ver a luz do dia mas muitos mais, acima desses, a viver dentro da cabeça do realizador. Tudo começou em conversas com Sydney Pollack, segundo Mann, e depois quando o argumento de Troy Kennedy Martin e Brock Yates chegou às suas mãos. A única maneira possível de começar era com um mergulho profundo na realidade de Enzo nesse histórico verão. A recriação pristina desse momento no tempo é fundamental para o sentimento de imersão na história. Desde as filmagens na terra natal da Ferrari, Modena, ou nos circuitos icónicos de Monza e claro no percurso da corrida que é o cerne da história, e a “salvação” da Ferrari como empresa – as estradas por onde circulava a, agora já extinta, Mille Miglia. O mesmo acontece no trabalho de guarda-roupa, na cenografia e, claro, na reprodução de raiz dos carros desta altura às mãos dos seus maiores artesãos, a própria Ferrari. E só assim poderíamos chegar aquele som cru que já não encontramos nos carros dos dias de hoje. Aquele poder de um trovão a ribombar, de uma raiva contida que se solta em cada pressionar do acelerador ansiando esse sentimento de libertação de uma mudança engatada. É por isso que este crítico aconselha uma selecção criteriosa de onde vão ver este filme pois este necessita de um sistema sonoro à altura para devidamente ser apreciado. Nenhumas palavras farão alguma vez justiça aos sentimentos que a audição desta bela “sinfonia” despoletarão num verdadeiro aficionado do mundo automóvel. Esse som divinal não se transfere para os inevitáveis acidentes que surgem exageradamente trabalhados digitalmente e desprovidos do realismo necessário. Esse exacerbar da perigosidade acaba por trabalhar em sentido contrário do desejado, o de mostrar uma outra era em que a segurança era a última prioridade nessa ânsia de vencer. Em igual proporção surge a questão dos diálogos, refém da herança de Hollywood de nunca se centrar na língua materna original das personagens e sim um constante arranhar daquele sotaque italiano de que o inglês se reveste. Uma decisão comercial que se percebe mas não deixa de soar a falsa.
Adam Driver consegue, fruto do seu talento, fugir um pouco desse sotaque e de se adaptar ao ritmo da língua italiana. Este Enzo de Adam Driver mostra essa vulnerabilidade de ser incapaz de separar a paixão do dever e do seu medo de falhar. Há uma coragem intrínseca do argumento de sempre tentar ir mais além do moralmente aceitável e transmitir algo para além dos “holofotes” dos grandes momentos históricos. Enzo mostra o seu lado mais negro quando puxa para junto do seu corpo, uma mulher que o tenta manter à distância ou quando ridiculariza um piloto por ser demasiado lento. Há sempre, no seu olhar, aquele sentimento de superioridade que o título de “Commendatore” lhe permitia excepto quando está com a sua mulher, Laura Ferrari (Penélope Cruz). O chamariz é Driver mas é com Penélope Cruz que ficamos rendidos, como que perdidos nos seus olhos carregados de raiva e de uma profunda tristeza, a de uma mãe que eternamente chora o filho e contempla a traição inesperada da sua memória. Aliás a nossa introdução no filme à sua Laura fala volumes das camadas com que Cruz a reveste, ora paixão, ora raiva e uma pitada de comicidade inesperada. Num tempo em que muitas mulheres eram forçadas a manter-se na sombra dos seus maridos, Penélope dá rosto a uma das pessoas mais importantes na sobrevivência da Ferrari. E esse é sempre um facto digno de menção.
Entre ambos existe uma profunda melancolia, no ritual que partilham, separados, na tumba onde jaz Dino Ferrari, o fantasma que permeia a vida deste casal. A bênção de o poderem ter filmado no exacto local onde jaz o seu corpo parece engolir ambos num mar de dor, para o Enzo de Driver expressando-o em palavras sentidas e para a Laura de Cruz uma “masterclass” de como exteriorizar um coração partido sem uma única sílaba. Como é habitual com personagens maiores que a vida todos os satélites, que gravitam à sua volta, parecem menores como Shailene Woodley sem tempo de sair da caricatura de amante à espera de um “sinal” ou Patrick Dempsey (sim o Dr. Derek de Grey’s Anatomy (2005-2021)), irreconhecível e maior que a vida como Piero Taruffi mas surgindo como mero figurante no tempo de antena que lhe é disponibilizado. Dos outros, como aconteceu no passado, nem reza a história.
Alheio à frase de Enzo Ferrari, que apregoa ser impossível dois corpos ocuparem o mesmo espaço no mesmo tempo, é na dupla Driver/Cruz que este Ferrari de Michael Mann assenta as suas fundações, sendo mais forte quando ambos se alimentam do talento mútuo para o elevar bem acima do razoável. O seu maior pecado é sucumbir, em momentos, ao digital, num mundo que era analógico, na sua essência, retirando-lhe esse carimbo de grandiosidade que merecia. Michael Mann mesmo longe do genial de outros tempos é ainda muito bom.