“Year after year, all over the land, I’ve followed my king on his military campaigns, enduring the wind and frost and hard toil.”
Supra, temos uma das frases mais icónicas da tradicional ópera chinesa Farewell My Concubine (Bà Wáng Bié Jī ) , ópera essa que dá nome ao filme e que é o principal fio condutor do seu enredo, como irão perceber. A estória de Farewell My Concubine, realizada por Chen Kaige, apresenta-nos Douzi (Mingwei Ma) e Shitou (Fei Zhen Xiang), duas crianças chinesas pobres que se conhecem numa escola rígida de Ópera de Pequim (ou Ópera de Beijing, a forma mais dominante de ópera chinesa) e a partir daí, criam uma ligação ímpar.
A narrativa, que é uma adaptação do livro homónimo da escritora Lilian Lee, desenvolve-se por meio de várias analepses que surtem um efeito notório: tornam claríssima a densidade temporal do filme, isto é, fica evidente a quantidade de anos de História Moderno-Chinesa que compõem Farewell My Concubine. Mais exatamente, são 50 anos de História do país asiático que perpassam épocas como a Dinastia de Quing (quando Douzi e Shitou eram adolescentes); o Governo de Beiyang (com Douzi e Shitou já adultos, adotando os nomes artísticos de Cheng Dieyi, interpretado agora por Leslie Cheung; e Duan Xiaolou, interpretado por Zhang Fengyi, com uma vida artística aclamada pelas suas performances de ‘Concubina’ e ‘Rei’, respetivamente, na peça Farewell My Concubine); a Segunda Guerra Sino-Japonesa; a Guerra Civil entre o Partido Nacionalista Chinês e os Comunistas; e especialmente a Revolução Cultural Chinesa, cujas repercussões são verdadeiramente sentidas na película: no impacto que esta rebelião teve para a ópera tradicional chinesa em sentido lato e, por sua vez, para o relacionamento entre Dieyi e Xiaolou, cuja tribulação aumenta ao tornar-se num triângulo amoroso com a presença de Juxian (Gong Li), a prostituta com quem Xiaolou se casa. Neste sentido, é importante ressaltar que os 50 anos de História da China retratados em Farewell My Concubine não são dispostos arbitrariamente, não são representados em vão, isto é, o mérito não advém somente da sua representação cinemática. Estes 50 anos são entrelaçados e aprofundados de modo brilhante juntamente com as vidas íntimas de Dieyi, Xiaolou e Juxian, tornando esta obra realmente única.
As performances dos três protagonistas, de Dieyi, Juxian e Xiaolou, são arrebatadoras, mas Leslie Cheung enquanto Dieyi destaca-se excecionalmente: a coragem e a sensibilidade da sua interpretação são emocionantes, bem como a sua exploração das questões da identidade e de género (igualmente notável na interpretação de Douzi por Mingwei Ma, particularmente ao recitar o trecho infra da ópera Dreaming of the World Outside the Nunnery), que é feita de uma forma subtilíssima, – exploração essa que o filme vai aprofundando concomitantemente, adentrando em temas como o amor entre homens no contexto da tradicional sociedade chinesa – e a sua manifestação apaixonada pela arte, pela Ópera de Pequim mais propriamente.
“(…) Yet I am by nature a girl, not a boy. Why must I wear these sexless robes? I see the joyful couples pass. In their splendid brocades. Despite myself, desire burns in my heart.”
Farewell My Concubine foi selecionado pela Time Magazine como um dos ‘’100 Best Movies of All Time’’ e galardoado com vários prémios, entre os quais a Palme d’Or em Cannes e os Golden Globes nas categorias de Melhor Filme Internacional e Melhor Fotografia, sendo o único filme chinês até hoje que recebeu tais distinções. De facto, o trabalho de Changwei Gu no âmbito da fotografia desta narrativa é de tirar o fôlego: a epicidade, o dramatismo e a suscetibilidade são sempre captáveis graças à sua mestria – e ao talento do elenco também – e muitas vezes, na grande maioria das vezes aliás, estão os três presentes e assoberbam-nos assim que atravessam o ecrã.
Os únicos aspetos passíveis de mero reparo são o ritmo, que considero ser lento demais ainda que reconheça que não poderia assumir o seu completo oposto, pois, reitero, tratam-se de 50 anos de história chinesa; e o final apenas e só porque à medida que o enredo avança torna-se um tanto previsível, mas mesmo assim não deixa de ser emocionante e impressionante, sendo por isso outro marco extraordinário da estória. Não é qualquer filme que consegue impactar o espectador mesmo quando este já sabe certamente qual será o seu final.
Nas palavras de Yuan Wang, Farewell My Concubine é “um microcosmos da História Chinesa Moderna“* (tradução livre) que impera pela sua interseccionalidade: amor, desamor e erotismo, história e política, género e identidade, poder e performance operam unissonamente e caoticamente por mais paradoxal que isso possa ser, brindando-nos, assim, com uma autêntica obra-prima.
*Wang, Yuan. (2024). A microcosm of modern Chinese history from the film Farewell My Concubine. Advances in Humanities Research, 8(1), 20-23.