“Eu sempre tinha acreditado em contos de fadas. Sempre tive a esperança de viver num. Mas agora que vivia num conto de fadas, era do tipo errado.”
Verdade. Era uma fanfiction no wattpad. Erin Doom, autora do romance Fabbricante di lacrime, inaugurou a sua carreira precisamente neste espaço dedicado a uma comunidade de apaixonados leitores que investem o seu tempo e a sua escrita nas suas personagens – ou celebridades – favoritas, expandindo os universos que veneram com uma perspectiva alternativa, maioritariamente inserindo as suas próprias pessoas nesta inéditas narrativas criadas pela sua imaginação e hormonas. Existe um aspecto cativante acerca de vozes únicas online motivadas pelo seu amor literário – ou simplesmente por protagonistas hot – a invadir romances populares com a sua visão. É uma manifestação criativa que comprova o impacto emocional deste género artístico, ocasionalmente divulgando futuros criadores visionários através de um fascinante diário excessivamente revelador acerca dos interesses pessoais dos seus autores. Todavia, é simultaneamente um buraco negro de clichés e fetiches que culminam num aborrecido diário excessivamente revelador acerca dos interesses pessoais dos seus autores.
Distante de surpresas como The Idea of You (2024), em meros segundos compreendemos que Fabbricante di lacrime é uma adaptação de uma fanfiction no wattpad, apegada às piores tendências do género. Isto não é o fundo do poço, como 365 Days (2020), mas é demasiado próximo, o suficiente para conseguirmos reconhecer o seu doloroso impacto sangrento. Aliás, no seu despropositadamente hilariante prólogo constatamos os infortúnios mastodônticos lapsos emocionais e as monstruosas fissuras narrativas que perseguem a realização desta longa-metragem até os seus créditos finais – um conselho para a Netflix seria substituir o “skip credits” por um mero “skip film” e resgatar a sua audiência de um Twilight (2008) desprovido de vampiros e do seu absurdo charme e competência básica artística. Durante breves instantes surge um pensamento intrusivo de estarmos perante uma paródia do subgénero cinemático Young Adult, particularmente devido aos seus diálogos ridículos que perfuram os temas principais desta história no argumento com a subtileza de um martelo pneumático, e do seu inusitadamente abrasivo ritmo, onde um acidente de viação que provoca a morte de um casal é captado visualmente como um sketch do Saturday Night Live. Alessandro Genovesi, cineasta responsável por esta desgraça (o acidente e o filme), estabelece imediatamente um ambiente caricato de melodrama destituído de verdadeiro impacto emocional e da elegante e mordaz linguagem cinemática que Pedro Almodóvar, um realizador celebrado pelo seu intenso melodrama, insere na sua filmografia. Neste sentido, Fabbricante di lacrime é um filme analfabeto.
Quando a narração da sua protagonista irrompe pela narrativa, The Tearsmith (título americanizado) recorda a sua audiência que esta obra audiovisual é um conto de fadas; palavras que acompanham a jornada de uma criança dentro de um colossal orfanato com a dimensão de um castelo, referido como o Túmulo, isento de empregados e habitado somente pela sua diretora, Margaret Stoker (Sabrina Paravicini), uma vilã Classic Disney sem o fun factor, e uma dúzia de órfãos. O Fabricante de Lágrimas, partilha a jovem, é uma lenda popular sobre um mundo onde ninguém podia chorar, implicando vidas vazias para os seus habitantes. Escondido da população, vestido pelas sombras, um solitário fabricante de lágrimas de cristal assistia as pessoas que pediam-lhe ajuda para chorar, para sentir alguma emoção, para poderem viver. Um conto ressonante para as vítimas desta prisão insensível, reforçada por uma mulher cruel. Evidentemente avistamos neste conceito um vasto potencial para uma história profundamente sentimental e uma longa-metragem grandiosa acerca de experienciar a felicidade dentro da dor e de reconhecer que enfrentar o nosso passado traumático é o derradeiro método para ultrapassar o sofrimento presente. As inúmeras possibilidades são constatadas esporadicamente pelo seu primeiro ato, produzindo a promessa de uma versão Young Adult de obras primas como El Laberinto del Fauno (2006).
Nope. Genovesi descarta instantaneamente estas ideias e avança para um romance sobre dois órfãos adolescentes: Nica Dove (Caterina Ferioli) e Rigel Wilde (Simone Baldasseroni) – a única vez que o nome Wilde será mencionado nesta review – adotados aos 17 anos pelo mesmo casal, aprisionados agora por uma estranha angústia denominada como tesão, espalhada pelos cantos da sua nova casa, enquanto procuram recomeçar as suas vidas. Ela é a capuchinho vermelho. Ele é o lobo mau. Eu sou a avó inocente, vítima deste assassinato referido como filme. Uma blacklight é desnecessária pois repentinamente, Horny Snow White domina a premissa desta adaptação, demonstrando uma invulgar inconsistência de pensamentos, atmosfera e características na personalidade das personagens. Rigel, cujo rosto é uma espécie de combinação Frankenstein entre Bill Skarsgård e Handsome Squidward de SpongeBob SquarePants (1999-), é referido como uma criança perfeita e problemático; odiado e amado; um adolescente que sofre de síndrome de bad boy com uma bipolaridade cinemática classificada pelos seus espectadores como: “I can change him.” Atrás da agressividade e dos assédios sexuais existe um coração (e mais assédios sexuais). Este péssimo argumento disfarça as suas contradições substanciais com a máscara da dualidade. Nica chama-lhe d’O Fabricante das Lágrimas. Eu chamo-lhe de vazio; uma personagem confusa, Fabbricante di confusione; uma página branca apta para ser pintada com as cores prediletas de uma audiência daltónica. Curiosamente, Nica acaba por ser o seu par perfeito pois é afligida por semelhante perturbação. Apesar do seu nome derivar dum género de borboleta, Caterina Ferioli interpreta a sua protagonista como uma lagarta em repouso.
Nica menciona o charme de Rigel, um que nunca testemunhamos – deve ter ficado no orfanato –, como um dos fatores principais responsáveis pela atração que sente pela sua figura, sentindo-se arrastada por sentimentos duvidosos e conflituosos perante o seu, presentemente, irmão. Imagens que refletem desejos taboo sempre marcaram presença na sétima arte, destacando a sensualidade do proibido e realçando o erótico dos olhares e do impetuoso anseio carnal imobilizado pelas barreiras da sociedade. Longas-metragens como Secretary (2002), In the Realm of the Senses (1976), Ultimo tango a Parigi (1972), The Piano (1993) e L’été dernier (2023) exploram idênticos conceitos de sigilosos apetites lascivos através de complexas personagens cativantes que desafiam a percepção do público acerca do seu próprio libido, usufruindo da arte audiovisual para despertar e estimular uma capeada tentação humana. É essencial possuir uma visão concreta; compreender o poder de um frame, o poder das palavras. É completamente necessário reconhecer química. Uma inexistente nesta película. É fundamental perceber a natureza imoral destas histórias para poder navegar cinematicamente por uma realidade efetivamente desconfortável que presenciamos no nosso mundo, como a inerente violência destes romances indicados.
Admito que persiste um charme (e algumas gargalhadas) na sua disparatada composição e nas personagens secundárias ligeiramente agradáveis; que por vezes sobressaem pontos interessantes no seu argumento como uma analogia que compara orfanatos a centros comerciais (o aspecto desumano de procurar crianças adequadas como se fossem legumes num supermercado). É, também, genuinamente um conceito fantástico digno de uma obra extraordinária: um conto de fadas sensual acerca de existir num mundo onde é necessário esconder as nossas emoções, sobretudo sentimentos proibidos, para sobreviver. Estou consciente que é injusto comparar Fabbricante di lacrime com a filmografia de Nagisa Oshima ou Jane Campion. É um conto de fadas; uma adaptação de um romance Young Adult que nasceu como uma fanfiction no wattpad. O exagero é o apelo. Todavia, acredito que é indispensável existir personagens minimamente cativantes; que os seus clichés estejam sempre ao serviço da história, e nunca que a sua história esteja ao serviço dos seus clichés.
Fabbricante di lacrime é dramaticamente masturbatório. A tensão do seu enredo é apagada pelo pacing desenfreado da sua edição, por uma realização despojada de visão ou investimento emocional e por um argumento absurdo e derivativo com metáforas ilógicas anunciadas constantemente por um megafone, e uma conclusão patética num tribunal capaz de causar um ataque cardíaco a Aaron Sorkin. Nunca sentimos o erotismo convocado pela sua premissa porque não existe sedução entre as personagens. Porque não existe sedução entre o filme e o espectador. Tudo é forjado e forçado, incluindo uma banda sonora que exagera na sua melodia harmoniosa, refletindo o seu desespero por encarnar O Fabricante de Lágrimas do seu público. O filme precisa de vestir a pele desta figura porque não tem mais nada além destes frágeis cristais para oferecer. Não é um fabricante, é um abismo. Um abismo que nunca olha para dentro de nós. Que tristeza experienciar um filme e simplesmente não sentir nada.