Exhuma (2024)

de João Iria

O cinema como um acto de recordação, como uma memória numa constante metamorfose audiovisual, consegue, cuidadosamente, ser um meio de expressão artístico que pronuncia canções do passado, partilha histórias universais como individuais, e que abre os olhos do mundo a uma realidade distante, expandindo horizontes apagados. O cinema como um acto de desenterrar corpos, limpar túmulos, ressuscitar vidas apagadas e purificar o futuro. Uma fonte de criatividade emocionalmente libertadora, apta para capturar o trauma de uma única pessoa como de um país inteiro, apta para transformar uma sepultura numa semente. Naturalmente, escavando o género de terror, avistamos cravado nos seus ossos medos apocalípticos, religiosos, supersticiosos e folclóricos, relacionados com traumas históricos. No nosso presente, esquecemos os seus significados, a sua composição e a sua relevância. Ainda assim, o cinema permite-nos compreender o seu impacto, a sua origem, e recorda-nos que o trauma é um horror humano que nos persegue além do nosso fim, enraizando o nosso corpo neste solo de ferida aberta, 24 frames por segundo.

Exhuma, um dos maiores sucessos financeiros de horror sobrenatural nestes últimos anos, explora precisamente o trauma de uma nação. Um espírito malévolo que permanece presente na sua sociedade, no seu povo e no seu amanhã. Diante um novo trabalho exigente, que envolve descobrir o atormento de um recém-nascido, uma xamã, Hwa-rim (Kim Go-eun), e o seu protegido, Bong-gil (Lee Do-hyun), recrutam a assistência de um mestre de Feng-shui (geomancia), Kim Sang-deok – interpretado por um dos melhores actores de sempre, Choi Min-sik –, e do seu colega, um agente funerário, Yeong-geun (Yoo Hae-jin), para apaziguar a preocupação de uma família abastada e proteger o seu novo descendente desta indecifrável angústia. As origens deste sofrimento parecem residir no túmulo do falecido patriarca, o homem responsável pelas riquezas desta família, cujo enterro no meio das montanhas, próximas da Coreia do Norte, impediu uma passagem pacífica para o além. Assim decorre um processo de exumação para libertar esta linhagem inteira deste mal desconhecido. Contudo, dentro do caixão existem segredos nefastos capazes de destruir todos os participantes deste ritual.

Jang Jae-hyun, realizador e argumentista, dedica inteligentemente o seu primeiro acto a estabelecer e distinguir as suas personagens individualmente como as suas dinâmicas dentro deste grupo e da sua comunidade. É necessário realçar a vasta diferença entre a forma como estes protagonistas se relacionam com o mundo em comparação com esta família de classe alta, os seus novos clientes, isolados com uma vista para as luzes nocturnas de uma cidade sozinha, restringidos à sua árvore genealógica. Os visuais colocam a sua atenção nestes contrastes, entre uma paisagem de um hotel luxuoso, os seus vidros e espelhos manchados posteriormente com o reflexo de uma malignidade, com a formosidade das montanhas verdes coreanas, dominadas por uma liberdade infectada. São diferenças acentuadas para marcar simbolicamente a separação destas duas “famílias”, uma com refeições partilhadas entre gargalhadas e outra num silêncio desconfortável.

Através deste esforço criativo na edificação da sua narrativa e das suas figuras principais, juntamente com o incrível talento charmoso dos actores – todos com performances divertidas, interessantes e memoráveis, todavia atenção especial para Choi Min-sik e Kim Go-eun –, as personagens e a história ganham vida fora do ecrã, transportando entusiasmadamente a audiência num percurso nocivo, desejosa por conviver com esta equipa apesar de receosa pelo seu destino e igualmente alarmada com o perigo que enfrentam como o arrepio que encontra nesta imprevisível jornada. É uma introdução metódica, paciente e repleta de personalidade que permite explorar as suas personagens carismáticas, compreender o seu universo e o perigo deste seu novo trabalho, e elaborar um exímio build-up no seu suspense e no seu enigma. A sua estrutura de 5 actos, pontuada por capítulos é capaz de sentir-se cansativa para alguns espectadores, mas é exactamente esta dedicação que nos absorve na sua história. O seu rastilho prolonga-se num ritmo preciso, criando antecipação para a sua aterradora explosão, cuja magia final consome a nossa carne nas suas chamas.

Como nos melhores filmes do género, o realizador emprega o seu horror numa alegoria. Neste caso, o pavor surge simultaneamente na evocação de uma memória como nos seus visuais místicos e nas suas criaturas medonhas, espelhando uma história sobre o trauma de uma nação, as suas consequências duradouras no presente como no futuro e as inúmeras tentativas de enterrar este passado infortúnio, negando a sua existência. É um espírito que permeia as cidades, a sua riqueza, as luzes, as terras e a sua própria natureza, completamente inescapável. O cineasta desenvolve este suspense atmosférico, ocultando o seu terror numa névoa demoníaca, residindo nas sombras e nos reflexos, erguido por uma iluminação transcendente e metafísica, para conjurar a sua realidade tenebrosa e o seu contexto histórico. O terror traumático está escondido mas sempre presente.

Exhuma é arrastado pela inevitável frequente menção da obra-prima The Wailing (2016), superior em todos os aspectos audiovisuais. É uma comparação injusta, apesar de compreensível, pois partilham temas e imagens similares, perante este filme de Jang Jae-hyun, que segue pelo seu próprio caminho denso com um world building folclórico ambicioso e uma percepção esperançosa acerca do seu mundo e do seu futuro, ausente na criação do realizador Na Hong-jin. Admitidamente, são blockbusters de género elevados pela sua potência dramática, pelo seu intenso poder metafórico e pela sua arrepiante e hipnotizante construção narrativa, enterrando a sua audiência no seu horror, desprovida de oxigénio e desesperada por recuperar uma perdida crença num descanso eterno. São obras que conectam o passado físico com o futuro artístico e que manifestam o seu terror ancestral numa fisicalidade sobrenatural cinemática, examinando este impacto traumático no seu presente, onde até nos apartamentos da cidade crescem raízes vinculadas ao solo das suas montanhas. É uma ferida aberta impossível de cerrar. Exhuma sobressai principalmente neste aspecto por atribuir ao seu público o simples amável e compassivo acto de finalmente conseguir respirar fundo e sonhar com uma última paisagem saudável e libertadora.

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