Eunice Ou Carta a Uma Jovem Actriz

de Marco Sardinha

Quando entrei na Sala 2 do cinema São Jorge, fui sem saber bem o que esperar.

 

Sou céptico por natureza, o que deixou na parte de trás da cabeça uma pergunta a pairar: será que o valor do documentário iria assentar exclusivamente sobre a reveração expectável e inequívoca sobre um ícone como Eunice? 

 

O que hoje vi, não era um documentário. Mas não senti também que fosse uma carta.

 

Do que vi, e do que posso concluir sobre o pouco – mas muito bom – que vi, o próximo filme de Tiago Durão (agora em formato documental,) é um belo retrato que consegue existir num espaço indistinto entre três tempos: olha o passado, no presente, com uma presença consciente do futuro. Um documento íntimo, humano e sensível que, claramente num registo não documental, aborda a vida de uma das últimas descendentes de uma realeza cultural que já não existe. Altamente dramaturgizado, e que toca profundamente várias notas emocionas (não só poéticas, mas também audíveis, pelas mãos de Maria João Pires) – mas nunca de uma forma expiatória -. Profundamente afectuoso, e singularmente caracterizado por alguém que tem a sorte de poder habitar esse universo particular de Eunice – e Lídia – Muñoz e ao qual agora ganhamos acesso.

 

Não é uma peça imparcial, nem impessoal, fugindo – nos dois trechos e trailer a que pudemos assistir -, do registo observatório de um documentário mais normativo, e que também seria de qualquer das formas aqui desapropriado, pela natureza daquilo que se propõe a retratar, com ajuda de outros ícones de peso igual e próximos a Eunice, como é o caso de Ruy de Carvalho, ou Luís Miguel Cintra.

 

Um filme que – como seria de esperar, e por todas as razões do mundo -, contém um alargado e profundamente institucional conjunto de apoios, que dão também o nome pelo filme é, que poderia aqui listar, mas que, tendo em conta a sua extensão, deixo para o leitor (eventualmente) descobrir.  É bom saber que – no geral -, ainda há quem perceba o valor no legado daquilo que podemos definir como uma dying breed: uma artista, plena, com uma presença que transcende a limitada metragem quadrada que o modesto palco impõe sobre a sua existência.

 

A antestreia ocorrerá a 3 de Outubro, também no cinema São Jorge (mas agora no auditório Manoel de Oliveira, não na Sala 2). Estreia – num total de 32 salas nacionais – a 4 de Novembro.

Antes de mais: um pouco de contexto.

Este não-assim-tão-breve recap foi o primeiro texto que escrevi, e que surge no seguimento do visionamento de imprensa desta emocional e elegante “Carta” escrita (indirectamente) a seis mãos, e sobre a qual agora tenho de escrever, em formato expandido. Mas isso não irá acontecer, porque ao ver o filme integralmente foi para mim uma experiência refrescantemente igual a si mesma.

É um filme despretensioso e sincero, e que me parece pedir uma igualmente despretensiosa e sincera crítica, pelo que penso francamente que o recap que aqui deixei em cima – e que já antes havia escrito – já é a melhor crítica que posso dar.

Continua a ser tudo aquilo que já era, e tudo que pensava que seria. Continua belo. Continua poético. Continua sensível. Continua sincero. Continua a ser uma experiência profundamente tocante, humana e real e sobre o vínculo singular entre avó e neta, sendo que agora a ideia de legado e de passagem de testemunho entre estas duas indistintamente distintas pessoas, é mais evidente, graças ao tempo adicional que existe na minutagem total deste não-documentário (?) / não-ficção (?) / carta (?) / retrato (?) / documentário (?) / poema visual (?). 

É altamente auto-referencial e meta, já que o que seriam limites meio-cinema meio-teatro se esbatem. É uma peça de teatro, que é um filme, que é uma meta-ficção, que é, subversivamente, uma representação da realidade conceptual deste vínculo existente entre ambas. Numa jogada estilística que poderia facilmente ser remetida por uma convenção actual de tendências, Tiago Durão faz uso do 4:3 de uma maneira inesperadamente sensível e apropriada, talvez (ou não) condicionada pelo formato de arquivo, mas provavelmente mais fortemente convencionado pelo background formativo do teatro (o 4:3 é um plano de personagem, mais pessoal, íntimo, e de olhar), mas que adensa a dimensão altamente teatral – e quase ficcionalizada -, desta real vivência entre ambas. Posto de forma simples: o limite entre teatro e cinema passa a ser menos óbvio, e é em parte isto que torna este objecto visual mais aliciante, já que torna tudo mais ambíguo. 

Como boa peça de cinema que é: continua a fazer-me questionar sobre como a própria Eunice se poderá sentir ao ver este legado visual e cinematográfico materializado desta forma. 

Qual será a sensação de ser “Eunice”, no presente, a olhar para o passado? Como será olhar-mos para nós próprios, num tempo presente, olhando o nosso próprio passado; a  nossa história; os nossos conjuntos de experiências, que eventualmente fazem de nós, “nós”, e dos quais nos lembramos, vividamente, com uma plena consciência de que a pessoa que vemos, já não é a pessoa que somos, porque já construímos sobre ela? Isto é uma das questões com a qual o documentário mais frequentemente me deixa. Faz-me pensar e querer tentar perceber, como será sentir a vida desse outro, por entre todos esses tempos distintos e ainda assim convergentes tempos – passado, presente, e futuro -.

Posto tudo isto, tenho de admitir que há muitos momentos em que não sei bem o que escrever (ainda que ache saber bem o que pensar), porque há sempre dúvidas. Há alturas em que fico preso à ideia de que, se não escrever um mínimo olímpico de palavras ou frases, que a crítica é menos válida. Quase como se a quantidade de caracteres fosse uma métrica para a validade do que quer que seja. Mas a verdade é que não precisamos realmente de justificar com muitas palavras o que as coisas nos fazem sentir, porque não é isso as torna as coisas mais (ou menos) válidas. Eu não preciso de dizer mais do que aquilo que acho ser necessário, só para – aparentemente – tornar esta “crítica” (que nem tenho certeza de poder chamar de crítica), mais legítima.

Acho que fazer isso seria um artificio. E criar um artifício sobre um filme que nada de artificial tem, seria desonesto. Desonesto, e desnecessário. Portanto, opto por me ficar em grosso modo, por praticamente tudo o que já havia antes dito. É conciso, limpo, e mais do que qualquer coisa: sincero. E isto é tudo o que esta “Carta” realmente me (nos) pede: sinceridade.

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