Entrevista | Sara David Lopes e Silvia Di Marco – Direcção Artística do Festival Olhares do Mediterrâneo

de Fio Condutor

A 11ª edição do Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival, que decorre de 31 de Outubro a 7 de Novembro, destaca-se como uma plataforma essencial para o cinema feminino do mediterrâneo, promovendo não apenas a exibição de filmes, mas também o diálogo, a reflexão e a mudança social. Com o tema “Revoluções Quotidianas,” esta edição convida o público a explorar as transformações silenciosas que moldam a sociedade, seja através das temáticas desafiantes abordadas pelos filmes ou nas atividades paralelas e debates. Desde a seleção rigorosa de aproximadamente 70 filmes realizados por mulheres de quase 30 países, passando pela escolha da Palestina como foco de uma retrospectiva, o festival oferece uma visão ampla sobre temas como a igualdade de género, o colonialismo e a resistência cultural. Sara David Lopes e Silvia Di Marco, responsáveis pela direcção e programação do Festival, partilham nesta entrevista os desafios e motivações que envolvem a curadoria e a organização do festival, bem como o seu papel na promoção de um cinema independente que inspira a consciência crítica e o encontro de perspectivas diversas.

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Fio Condutor: Este ano, o tema do festival é “Revoluções Quotidianas”. Como é que este tema surge na programação, tanto nos filmes selecionados como nas atividades paralelas? De que forma este conceito desafia o público a refletir sobre as transformações silenciosas que moldam o nosso dia-a-dia?

Sara David Lopes & Silvia Di Marco (Direcção e Programação Olhares do Mediterrâneo): A ideia do tema surgiu em relação às celebrações dos 50 anos do 25 de Abril. Interrogamo-nos sobre o que é para nós uma revolução, e o que é a democracia e chegámos à conclusão que é importante pensar na revolução como um acto quotidiano de questionar o presente, questionar a sociedade e as estruturas de poder e, se não gostamos do que vemos, actuar para a mudança. Igualdade de género e racismo são casos paradigmáticos disso: sobra muito caminho a fazer nos dois casos. E não só. Quotidianamente temos de proteger as conquistas de Abril. Nos últimos anos tornou-se claro que a democracia e os direitos das minorias, dos grupos oprimidos e dos trabalhadores não são algo adquirido de uma vez por todas. Estão a ser continuamente questionados e devem ser defendidos. Isto, de alguma forma, quer dizer que a revolução democrática deve ser renovada todos os dias, em gesto de resistência quotidiana. Organizar um festival de cinema que mostra filmes feitos por mulheres do Mediterrâneo e que coloca ao centro da programação a Palestina, a violência de género, o colonialismo, mas também figuras de mulheres inspiradoras e histórias de amizade é um gesto de resistência no quotidiano. É a nossa forma de continuar a Revolução em gestos simples como o de ir ao cinema.

Esta ideia reflete-se em toda a programação. Por exemplo, na primeira sessão de curta-metragens, seguida por um debate intitulado “A vida dos corpos”, mostramos formas diferentes de vivenciar o corpo, como os corpos são socializados desde a nascença e como as pessoas, às vezes, se revoltam contra isso de forma muito simples: em Foreskin, da turca Ece Dizdar, uma mãe recusa-se a que o seu bebé recém-nascido seja circuncidado e em Pelo Sim Pelo Não, da portuguesa Laura Andrade, passamos um dia na praia divertido com um grupo de amigas que não se depilam. Formas realmente “quotidianas” de desafiar os hábitos sociais e fazer a revolução. Tanto a Ece como a Laura estarão no Festival. Nas longas, as obras que melhor exemplificam esta ideia de revolução são o documentários The Desert Rocker, da argelina-canadiana Sara Nacer, que fala de Hasna El Becharia, a mulher que revolucionou uma música tocada tradicionalmente só por homens, e A Mulher que Morreu de Pé, de Rosa Coutinho Cabral, documentário artístico sobre Natália Correia, uma mulher que realmente fez da liberdade de pensamento o seu quotidiano. 

Na programação paralela, a ideia de “revolução quotidiana” é presente em todos os debates, que tocam em temas como a violência de género, o colonialismo e a migração de menores não acompanhados e nos workshops. Em particular no workshop “Gender and stereotypes in films”, realizado com o apoio da Eurimages, onde se falará de como as mulheres são representadas nos filmes e na indústria cinematográfica.

Tudo isso, a nosso ver, leva o público a interrogar-se sobre a quotidianidade e a imaginar mudanças possíveis.

The Desert Rocker, de Sara Nacer

FC: Ainda no contexto das “Revoluções Quotidianas”, como avaliam o poder do cinema independente em provocar mudanças sociais e culturais a longo prazo? Que exemplos concretos desta edição demonstram esse potencial transformador?

SDL & SDM: Não há uma acção directa entre cinema e mudanças sociais e culturais, claro, mas pensamos que o cinema faz parte do mosaico de eventos e situações que podem levar a mudança. Daí ser tão importante o cinema independente, que não se limita a percorrer caminhos fáceis e conhecidos. Achamos que o cinema pode ser agente de mudança dando a ver e “sentir”, mundos reais ou fictícios, através de narrativas não hegemónicas, promovendo o debate e o encontro. Neste sentido, os festivais são muito importantes, porque transformam o ver um filme numa experiência verdadeiramente colectiva. Numa altura em que as pessoas estão cada vez mais fechadas em casa e nas suas bolhas, é mesmo importante ter lugares de encontro, reflexão e desafio ao pensamento crítico, a olhar o mundo de outras formas possíveis. 

FC: A escolha da Palestina como foco de uma retrospectiva dedicada ao seu cinema feminino parece particularmente pertinente, dado o contexto geopolítico actual. Qual foi a motivação por trás dessa escolha? Que tipo de narrativas palestinianas o público pode esperar ver nesta seleção, e como é que o cinema realizado por mulheres deste país contribui para uma visão mais abrangente sobre a resistência e a resiliência cultural?

SDL & SDM: A motivação foi exactamente o contexto geopolítico actual, um gesto de solidariedade. O Festival sempre se posicionou de forma clara relativamente à chamada questão palestiniana. Sem nunca deixar de reconhecer e defender o direito dos judeos a viver em segurança em qualquer lugar do mundo, incluindo Israel, consideramos que o povo palestiniano é um povo oprimido e merece a nossa solidariedade. Está em acto um processo de desumanização dos palestinianos e das palestinianas, e a retrospectiva quer contrariar isto, quer dar a ver esta humanidade. É muito significativo que a maioria dos filmes que seleccionámos sejam filmes da diáspora, testemunho concreto da impossibilidade destas pessoas de viverem na Palestina (tanto em Gaza como na Cisjordânia). São filmes muito diversos que incluem ficção, documentário, animação e obras experimentais, mas todos lidam com questões relacionadas com a memória e os arquivos de imagens e filmes ou com a resistência. Memória, arquivos e resistência claramente estão ligados: estas realizadoras resistem contra o apagamento da memória passada e presente da existência de um povo criando obras novas, que por sua vez produzem novos arquivos da auto-representação palestiniana, e indo à procura dos arquivos perdidos. 

3000 Nights, de Mai Masri

FC: O festival exibe cerca de 70 filmes de quase 30 países, todos realizados por mulheres. Quais são os principais desafios na curadoria de uma seleção tão diversa, garantindo ao mesmo tempo uma representatividade fiel das várias realidades mediterrânicas? Que estratégias são utilizadas para garantir que essa diversidade também se reflete nos diferentes pontos de vista e experiências das realizadoras, sem cair em estereótipos ou visões simplificadas da região mediterrânica?

SDL & SDM: O maior desafio é sem dúvida conseguir a representatividade porque a área do Mediterrâneo é caracterizada por várias disparidades. É claro que é muito diferente fazer filmes na França, na Síria, na Tunísia ou em Malta. Por isso, quando abrimos a chamada para filmes, fazemos um esforço particular para conseguir que seja divulgada da melhor forma possível nos países com menor produção e com os quais temos menor proximidade. O mesmo acontece com os filmes que procuramos directamente: tentamos trabalhar com distribuidoras independentes que nos permitam aceder a filmes de realizadoras marroquinas, gregas, libanesas, palestinianas, etc. Na própria avaliação dos filmes esforçamo-nos para valorizar a diversidade artística e cultural. Países diferentes têm tradições e estilos cinematográficos diferentes, o grande desafio para nós é apresentar e promover esta diversidade sem abdicar de padrões qualitativos elevados. 

FC: Os temas da justiça social e da igualdade de género sempre foram centrais no Olhares do Mediterrâneo. Como foi a evolução desses debates no contexto do cinema mediterrânico ao longo dos anos? Consideram que o público tem mudado a sua perceção sobre estas questões ao longo das várias edições?

SDL & SDM: Em termos de produção cinematográfica observamos claramente variações ligadas às questões que a cada momento são consideradas mais urgentes, mas é muito interessante observar uma certa especificidade geográfica dos temas tratados. Por exemplo, recebemos de Espanha muitos filmes claramente feministas e muito focados na questão da identidade de género; os filmes sobre igualdade de género que recebemos da França muitas vezes lidam com questões do trabalho, enquanto em Itália parece ser mais proeminente o tema da violência e no Norte de África a posição das mulheres mais em geral dentro da sociedade e na família. Relativamente ao público, temos observado que se trata de um público cada vez mais novo e interessado nestes temas. Um público informado e desejoso de debater, o que nos encoraja muito.

FC: Além dos filmes, o festival oferece uma programação complementar com debates, exposições e outras atividades. Que aspectos desta programação são mais entusiasmantes nesta edição especificamente?

SDL & SDM: Este ano, conseguimos um financiamento EuroImages que nos permitiu apostar na consolidação do nosso programa Indústria. Isso é algo que já vínhamos a desenvolver de forma mais tímida em anos anteriores, mas o financiamento deste ano poderá levar-nos a dar um salto qualitativo. Entusiasma-nos muito a procura que temos tido desde o início do Festival por parte de artistas e ou associações que nos propõem actividades. Destacado este ano o nosso programa de artes visuais que decorrerá na Casa do Comum, com curadoria da curadora e programadora cultural Alexia Alexandropoulou e a exposição de desenhos pela Palestina que estará patente no Cinema São Jorge durante o Festival. 

FC: Como co-diretoras artísticas, qual foi o maior desafio na organização desta edição e o qual o maior sucesso até agora?

SDL & SDM: O maior desafio tem sido mesmo concretizar o Festival. Temos tido uma evolução gradual e orgânica, cautelosa, e tem sido muito gratificante verificar que as nossas opções vão ao encontro do interesse do público. Contudo, considero que o nosso maior sucesso é a procura crescente das escolas para as nossas sessões escolares, que este ano bateram o recorde, já com mais de 2300 inscrições. Esta procura vem ao encontro de um dos nossos objectivos, o de levar o público não só a conhecer outras realidades e culturas, como a desconstruir ideias feitas e a manter um espírito aberto face à diferença, algo que nos parece ser muito urgente nos dias que correm. Ter esse papel junto das escolas numa população tão jovem é um privilégio.

FC: O festival tem uma forte componente formativa, incluindo workshops. Que tipo de actividades formativas estão previstas este ano e a quem se destinam?

SDL & SDM: Este ano temos vários workshops para públicos diversificados, desde um workshop de canto para um público geral, a formações no âmbito do nosso programa Indústria, mais direccionadas ao meio cinematográfico, para jovens realizadoras ou para os profissionais do ramo.

FC: Ao longo do festival, será realizada uma série de debates em torno de questões de género, identidade e diversidade cultural. Conseguem dar-nos um exemplo de um debate que considerem imperdível?

SDL & SDM: Efectivamente, a nossa proposta de debates centra-se em áreas tão diferentes como colonialismo, identidades do corpo, violências do género, migrações. Se tiver de destacar um, penso que o debate sobre os migrantes menores não acompanhados que chegam à Europa é aquele que mais urgência reflecte. Infelizmente, desde que abordamos estas questões (há já 11 edições), a área das migrações e dos refugiados continua a merecer – pelas razões mais tristes – a nossa atenção e a nossa reflexão.

FC: O festival tem também uma secção competitiva. Quais são os critérios fundamentais que orientam a seleção dos filmes em competição, e que tendências artísticas ou temáticas mais marcam as submissões desta edição?

SDL & SDM: Acima de tudo, a pertinência temática é a diversidade. O festival tem um formato muito compacto e quatro secções para mostrar filmes de 22 países do Mediterrâneo. Isto permite ter uma grande diversidade, mas complexifica o nosso puzzle. Procuramos fazer reflectir tudo isso no quadro global da programação. Sendo um festival que se interessa acima de tudo por questões que inquietam a sociedade actualmente, o nosso foco vai sobretudo para as mensagens e as temáticas abordadas. Nessa medida, por exemplo, se tivermos um filme de escola do Egipto que toque a mesma temática que um filme tecnicamente mais desenvolvido de uma realizadora francesa mais experiente, teremos a tendência de escolher o filme egípcio. Dentro dos filmes que nos chegam há temáticas recorrentes, a família, as raízes, a desigualdade e violência de género, as migrações e refugiados, sempre… Não posso dizer que haja uma temática mais forte, mas este ano também apareceram mais filmes a questionar a (de) colonização, uma das razões pelas quais até temos dois debates sobre o tema.

The Girls Are Alright, de Itsaso Arana

FC: Tendo em conta o contexto de transformação digital e a proliferação de plataformas de streaming, de que forma o Olhares do Mediterrâneo tem adaptado a sua missão e formato para continuar a promover o cinema independente e os filmes de realizadoras que podem, de outra forma, ter menos visibilidade?

SDL & SDM: Essa é uma área que não estando fora dos nossos horizontes, logisticamente ainda não está ao nosso alcance. Tivemos uma experiência muito positiva durante a pandemia, tendo tido um formato misto de sessões presenciais e on-line numa plataforma. Queremos apostar nisso também, até porque permitiria dar mais visibilidade aos filmes, mas essa divulgação acarreta questões de ordem logística e da ordem dos direitos dos filmes e é algo que requer um investimento que ainda não estamos preparadas para fazer.

FC: Quais são os planos para o futuro do festival?

SDL & SDM: O nosso objectivo é continuar a crescer de forma sustentada, aumentar a qualidade do nosso formato e a diversidade das nossas actividades paralelas. Temos também a intenção de promover as nossas extensões e as nossas actividades entre edições, levando os nossos filmes a mais público e a público que não se encontra em Lisboa. 

Entrevista realizada por Sara Ló e João Iria

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