Entrevista | Sara David Lopes – Co-Directora do Olhares do Mediterrâneo

de Fio Condutor

O Festival Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival regressa este ano para a sua 9ª edição entre os dias 14 e 20 de Novembro, no Cinema São Jorge e na Cinemateca Portuguesa. O festival, que há quase 10 anos celebra o cinema e a arte feita no feminino dos países banhados pelo mar titular, escolheu o Líbano como país convidado para esta edição e será a Cinemateca a dedicar o seu espaço às realizadoras deste país durante os dias 14 e 16 de Novembro, continuando de seguida no Cinema São Jorge com mais 3 exibições, sendo uma retrospectiva com um total de 9 obras.

Ao todo, serão exibidos 51 filmes de 26 países entre 3 competições em competição – Curtas, Travessias e Começar a Olhar – e duas secções Fora de Competição – Mostra de Longas-Metragens e Olhares do Líbano –, a juntarem-se aos já habituais workshops, sessões escolares e masterclasses.

Tivemos a oportunidade de falar com Sara David Lopes, uma das directoras do Olhares do Mediterrâneo, para discutir um pouco sobre o crescimento do festival pioneiro em Portugal, o que levou à escolha do Líbano como destaque deste ano e a importância de dar destaque ao cinema feito no feminino.

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Fio Condutor: O Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival, teve a sua primeira edição em 2014, consagrando-se como o primeiro festival internacional de cinema em Portugal dedicado exclusivamente à cinematografia feminina. O que esteve na sua génese e quais as principais motivações para a sua criação?

Sara David Lopes: O nosso festival começou com um desafio que colocámos a nós mesmos: fazer uma espécie de extensão do festival Films Femmes Méditerranées, em Marselha, com o qual tínhamos um contacto privado. Com base nesta ideia, fizemos uma primeira edição, muito compacta e divertida, integrada nas Festas da Cidade. A ideia original era ficar por ali. Só que o resultado foi tão gratificante que decidimos continuar… e entretanto, cá estamos, a preparar a 9ª edição. Da primeira para a segunda, passámos a ser um festival competitivo. Ao longo das edições, fomos acrescentando secções de competição e fomos alargando um pouco o pressuposto inicial de serem apenas filmes realizados por mulheres. Actualmente, o que queremos são filmes que tenham mulheres na equipa criativa (produção, argumento, montagem, fotografia…), mesmo que realizados por um homem. E nesses casos, é por causa das mulheres que o escolhemos. Desde o início, sempre tivemos muitas actividades paralelas e gostamos desse formato misto, sem nunca perder de vista que o importante é o cinema. A nossa principal motivação é mesmo divulgar o trabalho das cineastas do Mediterrâneo. Mostrar quais as suas preocupações, quais as suas temáticas, dar assumidamente espaço às mulheres num mundo em que os homens têm muito mais oportunidades. Nessa medida, temos vindo a construir uma rede e a constituir-nos como um marco de referência para as realizadoras e é com muita satisfação que vemos isso reflectido nos filmes que nos enviam, vindos de todo o Mediterrâneo, bem como as parcerias que nos têm sido propostas. Procuramos também contribuir para a desconstrução de estereótipos e promover a igualdade de género e o combate pelos direitos humanos e das minorias. Com isto em mente, temos apostado muito na formação de um público mais jovem com as nossas sessões para as escolas, onde já recebemos perto de dez mil alunos dos vários níveis de ensino.

FC: Caminhamos agora para a sua 9º Edição e claramente já ocupa um espaço no panorama cultural português. Como descrevem a evolução do festival ao longo das suas edições?

SDL: Sentimos que, de edição para edição, tem havido uma evolução muito gradual e crescente, mas sobretudo, muito sustentada. A nossa equipa é muito pequena e não queremos dar passos maiores do que as pernas. Todos os anos tentamos diversificar um pouco, sem ampliar propriamente, o que já de si é um desafio. Temos acrescentado (ou retirado) secções, temos alargado o âmbito das actividades paralelas e sentimos que o público tem aderido muito bem a todas as nossas decisões. Isso encoraja-nos muito. Por outro lado, sentimos uma procura crescente do Festival, aquando do período de submissões de filmes. Isso é também fruto de um trabalho de divulgação constante no estrangeiro, junto de entidades e realizadoras para que saibam da nossa existência e nos enviem os seus filmes. Particularmente gratificante e significativo tem sido, para nós, a procura das produtoras e realizadoras portuguesas. Isso reforça a nossa ideia de que realmente é importante dar espaço à cinematografia feminina e constatamos com agrado que esse espaço é encontrado no nosso festival.

FC: Quais são as maiores dificuldades/adversidades que sentem na organização de um festival com as características do Olhares?

SDL: A maior dificuldade é sem dúvida financeira, porque isso condiciona em muito a nossa capacidade de acção. O Festival é todo feito com uma equipa de voluntários que o fazem no seu tempo livre. Se até agora isso tem sido possível, graças a uma planificação muito alargada no tempo e muita determinação, a situação começa a ficar mais complicada, porque a procura crescente que temos sentido obriga-nos a desdobrar os poucos recursos humanos que temos para lhe dar a devida atenção. Relativamente a adversidades, temos de lutar continuamente para desfazer o estereótipo que o nosso nome suscita e mostrar que o festival não é um evento para mulheres nem se dedica exclusivamente a questões femininas. A maioria dos filmes apresentados nos circuitos comerciais e na televisão, mas também nos festivais de cinema, são feitos por homens. Porém, ninguém acha que sejam filmes só para homens ou que tratem de questões “masculinas”. Porque é que então os filmes feitos por mulheres não podem ter a mesma universalidade? Isto faz-nos perceber quão necessárias são iniciativas como o nosso festival, que querem destruir esta visão completamente absurda e limitada do trabalho das mulheres que fazem filmes e, mais em geral, do papel da mulher na sociedade.

FC: Em linhas gerais, o que procuram num filme para a sua integração no festival?

SDL: Acima de tudo, procuramos filmes que traduzam os interesses e as preocupações das cineastas do Mediterrâneo e que contribuam para alargar o nosso conhecimento doutros países e realidades, e que através disso nos permitam ter uma visão mais desafogada do mundo e nos ajudem a questionar os nossos próprios estereótipos. Do ponto de vista do conteúdo, interessam-nos filmes que abordem a igualdade de género, a liberdade de orientação sexual, a desigualdade social, questões que se prendam com as migrações e o trabalho, mas também valorizamos filmes sobre relações pessoais e familiares. Subjacente às nossas escolhas, temos sempre o cuidado de seleccionar filmes que permitam uma programação para os mais novos, quer para a sessão de famílias, quer para as escolas. Há que dizer que, na sua maioria, os filmes que programamos vêm ter connosco, sendo-nos enviados no nosso período de submissão, geralmente entre Fevereiro e Maio. Destes, sempre com a intenção de representar o universo de filmes que nos foram submetidos, bem como os diversos países do Mediterrâneo, procuramos programar aqueles que pela temática abordada sejam relevantes para o Festival. Curiosamente, a cada ano, há sempre alguns temas que sobressaem. Este ano, por exemplo, recebemos vários filmes que abordam a sexualidade feminina e aproveitámos isso para construir uma sessão com esse tema. Recebemos também vários filmes que nos apresentam mulheres fortes e revolucionárias ou filmes que questionam a identidade de género. Entre filmes que abordem uma mesma temática, procuramos escolher aquele que a filme de forma mais rica ou aquele que provenha de um país que esteja menos representado. Devido ao nosso habitual número reduzido de sessões (cerca de 15-18) e à grande diversidade e número de países do Mediterrâneo, deixamos de fora muitos filmes excepcionais e maravilhosos. Por outro lado, há uma coerência programática na montagem do Festival enquanto todo, portanto, há filmes que escolhemos ou que excluímos, não por não serem óptimos e relevantes, mas porque no conjunto da programação não encaixam tão bem. Tem acontecido mais do que uma vez excluir um filme num ano e programá-lo no ano seguinte.

FC: Em colaboração com o Beirut International Women Film Festival/Beirut Film Society, este ano há a programação especial Olhares do Líbano, com uma selecção de filmes de realizadoras libanesas produzidos entre 1974 e 2021. Como recaiu a escolha sobre o cinema Libanês para um destaque nesta edição?

SDL: A escolha do Líbano como país convidado desta edição tem várias razões. Em 2020, criámos uma rede de festivais de cinema mediterrânicos com nove parceiros, entre os quais o Beirut International Women Film Festival (BIWFF) em representação do Líbano. No âmbito da criação dessa rede fizemos uma extensão do nosso festival na 4ª edição do BIWFF, Julho de 2021. Ficámos completamente apaixonadas pela cidade e pelas pessoas. Quase um ano após a tremenda explosão no porto de Beirute que matou centenas de pessoas e feriu milhares, a destruição era ainda patente e estavam todos ainda muito traumatizados. O Líbano já se encontrava numa situação muito difícil, que entretanto piorou, e, apesar de todas as dificuldades, incluindo cortes de eletricidade e falta de gasolina, a cidade estava cheia de vida e conseguiam criar arte, fazer cultura, realizar um festival de cinema. Nesse sentido, ter o Líbano como país convidado numa programação conjunta com o BIWFF foi uma forma de homenagear a resiliência e a criatividade da sociedade civil libanesa. Por outro lado, interessa-nos o facto de o Líbano ser um concentrado de cultura, vitalidade, diversidade e conflitos, representando assim uma espécie de símbolo amplificado do universo do Mediterrâneo, que é o ponto de partida do nosso Festival. Por fim, mas não por último, há razões nitidamente cinematográficas. O cinema libanês é sem dúvida um dos mais vitais no panorama dos países de língua árabe e provavelmente o único com uma realizadora, Nadine Labaki, conhecida internacionalmente pelo grande público (Labaki, que é também actriz, é uma presença regular em Cannes e o seu filme Cafarnaum foi nomeado para o Oscar como Melhor Filme Estrangeiro). Era portanto muito interessante para nós trazer a Portugal as obras de outras realizadoras deste país. Temos muito orgulho em ter conseguido não só organizar a primeira retrospectiva de cinema libanês na Cinemateca Portuguesa, que acolheu desde logo a nossa proposta, mas também em trazer a Lisboa Heiny Srour, a primeira mulher árabe a ter um filme no Festival de Cannes, em 1974. A realizadora estará nos Olhares do Mediterrâneo para apresentar na Cinemateca os filmes The Hour of Liberation Has Arrived (1974) e Leila and the Wolves (1984) e para dar a masterclass Making world-changing films, no Cinema São Jorge.

FC: Alguns filmes da programação funcionam também como mote para a existência de outras atividades como workshops, debates e masterclasses, que pretendem reforçar a importância dos olhares e visões das cineastas do mediterrâneo. De que forma é que o festival como um todo pretende impactar a forma como o público vê o cinema no feminino?

SDL: A nossa ideia das actividades paralelas prende-se com a vontade de mostrar várias dimensões deste olhar feminino, mas acima de tudo, pretende ser também um reflexo das questões que nos preocupam, enquanto Festival. Assim, entre programar debates e actividades e acolher iniciativas que se encaixem de alguma forma neste nosso projecto, sentimos que o Festival fica enriquecido. As pessoas têm interesses muito diversificados e na pluralidade de actividades e filmes que programamos, pretendemos alcançar o maior número possível de pessoas. Pode haver pessoas que vão atrás de uma actividade e acabam a ver um filme tunisino, por exemplo, sobre a eutanásia.

FC: O Olhares do Mediterrâneo tem a particularidade de ser um festival co-construído com uma instituição como o CRIA – Centro em Rede de Investigação em Antropologia, e conta com parcerias institucionais como a CIG – Comissão Nacional de Cidadania e Igualdade de Género ou a ACM – Alto Comissariado para as Migrações. De que forma é que estas colaborações diferenciam o Olhares do Mediterrâneo de outros festivais de cinema em território nacional?

SDL: O nosso festival assume-se com duas grandes missões. Uma, como já referi, é a promoção do cinema feito pelas mulheres que trabalham na área do Mediterrâneo (realizadoras, produtoras, montadoras, etc.), a outra é “usar” o cinema, passe a expressão, para promover o diálogo e a mudança social acerca de temas que consideramos fundamentais, nomeadamente a igualdade de género e os direitos humanos. Somos um festival engajado e isto é patente na nossa programação cinematográfica, nas actividades paralelas que organizamos, e no nosso esforço para levar as escola ao cinema e o cinema às escolas. O acolhimento do CRIA, por exemplo, permite-nos criar debates com qualidade académica e sustentada, sobre questões por vezes polémicas e fracturantes, de uma forma perfeitamente acessível ao público em geral. As parcerias institucionais reforçam o papel que o Festival tem no combate à exclusão social e na promoção de uma reflexão sobre as questões que os preocupam.

FC: Diz-se que hoje é mais fácil para uma mulher realizar um filme do que seria, por exemplo, há 10 ou 15 anos atrás. Com praticamente uma década de festival, sentem que houve um aumento das submissões e da qualidade dos filmes em competição, fruto de maior investimento nestas produções?

SDL: Pode haver essa ideia, mas os incrementos são muito diminutos. A luta pela paridade é transversal a todas as áreas da sociedade e a cultura não é uma excepção e o cinema ainda menos. Fazer um filme custa muito dinheiro e a grande fatia dos financiamentos públicos continua a ir para os realizadores homens. À laia de exemplo, em 2021, foi submetido ao ICA o pedido de financiamento para 35 longas-metragens de ficção, das quais só 6 eram de mulheres. Destes 35, foram apoiados 6, dentre os quais só uma realizadora. Por outro lado, nas condições de candidatura pode ler-se “apenas podem ser apresentados projectos de realizadores que tenham anteriormente realizado duas ou mais longas-metragens de ficção cinematográfica com estreia comercial ou exibição pública”. Ora só isso já condiciona ainda mais, porque poucas são as mulheres realizadoras que possam cumprir esse critério. É uma pescadinha de rabo na boca que reduz ainda mais as possibilidades de financiamento. Já para as curtas, em 139 pedidos havia 34 curtas de mulheres, e das 15 obras financiadas, só 6 eram de realizadoras. Nos documentários, em que não existe a restrição da obra passada e as mulheres têm conquistado um espaço de referência, das 132 candidaturas, 22 foram de mulheres e no conjunto das 11 obras apoiadas, 7 foram de mulheres, duas delas em co-realização com um homem. Ainda assim, no montante atribuído, as realizadoras mulheres ficaram em desvantagem. Ao fim de quase uma década, temos tido um aumento sempre crescente de submissões, mas não conseguimos avaliar se isso representa que há mais mulheres a fazer filmes ou se isso se deve a uma maior visibilidade e credibilidade do nosso Festival.

FC: O debate público tem-se intensificado no plano da identidade de género, e encontramos filmes em exibição no festival como Ary de Daniela Guerra a tocar nesse mesmo tema, seguido por um debate sobre transexualidade. De que forma é importante para o Olhares do Mediterrâneo dar espaço, não só a mulheres cis de diferentes culturas e contextos sociais, mas também a uma comunidade de mulheres trans que tem visto os seus direitos postos em causa?

SDL: No que diz respeito às mulheres, o nosso foco são todas aquelas que têm visto os seus direitos postos em causa. A comunidade trans tem de lutar contra um muro de preconceitos para ser aceite e reconhecida, mas a mesma luta é travada por outros segmentos de mulheres cis com lutas mais silenciosas e invisíveis, como por exemplo aquela que abordamos no filme Room Without a View, sobre as trabalhadoras do serviço doméstico no Líbano, que trabalham num verdadeiro e assumido regime de escravatura institucional, a Kafala, filme esse que também será seguido por um debate intitulado “Por Trás das Persianas e Redes Internacionais: Trabalho Doméstico e Tráfico de Pessoas” cujo painel integra investigadores e trabalhadoras representantes de sindicatos e associações de trabalho e cuidado doméstico.

FC: Qual é a importância de uma secção como a competição Começar a Olhar, com obras de jovens em início de carreira?

SDL: Gostamos de pensar que esta competição é importante, até porque as jovens realizadoras no início da carreira acumulam desvantagens pela idade e género. Procuramos ter uma secção que mostre também quais as preocupações das jovens cineastas de todo o Mediterrâneo e mostrar como estas são transversais a todos os países, numa comunhão de preocupações e interesses geracionais que se revela muito interessante. Sentimos que a passagem pelo Festival pode ajudar as jovens cineastas a impulsionar as suas carreiras, mas para lá disso, entrar na competição proporciona-lhes também uma experiência de “mundo real” e interacção com os diversos interlocutores do meio.

FC: O que esperam para o futuro do Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival?

SDL: Esperamos conseguir continuar a mostrar muitos filmes e levantar muitas questões e continuar a trazer ao público português a nossa selecção do que se faz por aí. Para o ano, teremos a nossa 10ª edição e contamos celebrá-la em pleno, mas entretanto temos um longo caminho a trilhar, um Festival todo pela frente, portanto será preciso ter paciência e acompanhar-nos até à próxima edição!

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Mais informações sobre o Olhares do Mediterrâneo em: www.olharesdomediterraneo.org

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