Entrevista | Rita Nunes – Realizadora de “O Melhor dos Mundos”

de Fio Condutor

Durante a nossa cobertura da 30ª edição do Festival CineEco, tivemos a oportunidade de entrevistar a realizadora portuguesa Rita Nunes, responsável pela longa-metragem O Melhor dos Mundos, vencedora do Prémio da Juventude Longa-Metragem em Língua Portuguesa no Festival. Uma história sobre um casal de cientistas, Marta e Miguel, cuja relação é posta à prova quando dados analisados por Marta apontam para uma probabilidade muito alta de um enorme sismo poder atingir Lisboa. Um debate surge sobre alertar ou não a população para uma possível tragédia iminente.

Nesta entrevista, conversamos com a cineasta sobre o processo criativo envolvido em balançar ficção e realidade numa longa-metragem, o conceito de disaster movies e os medos actuais dentro do nosso país que influenciaram esta narrativa.

Fio Condutor: Em nome de toda a equipa agradeço a disponibilidade para fazer esta entrevista. Como te disse eu tive a oportunidade ver na sexta o teu filme que aborda um cenário de desastre sísmico em Lisboa e a primeira pergunta que gostava de fazer é bastante direta, mas acredito que é uma das mais importantes: qual é que foi a inspiração para criar uma narrativa sobre essa ameaça natural? E como foi equilibrar a realidade científica com a ficção?

RITA NUNES: Eu já tinha esta ideia há muitos anos, porque nasci e cresci em Lisboa. Julgo eu que para a maioria das pessoas que vive em Lisboa, que cresce sabendo que aconteceu o grande terramoto [na cidade] em 1755, faz parte da memória coletiva dos lisboetas ou das pessoas que vão viver para Lisboa. É uma inevitabilidade. Acho que estamos rodeados da história que nos circunda.

Eu, pelo menos, gosto muito da História e também gosto de ciência. Desde há muitos anos que queria fazer um projeto que tivesse a premissa da possibilidade de acontecer um novo grande terramoto, por isso parecia-me bastante claro – e percebendo por todas as coisas que tinha lido até essa altura –  que era consensual de que ia haver um novo grande terramoto.

Isso faz parte da cidade e da história do país. Já aconteceram outros grandes terramotos [em 1356, 1531], parecia que havia quase até uma coisa cíclica: de haver um grande terramoto a cada 250/300 anos… A dada altura eu pensei “isto está mais ou menos a chegar aos 250/300 anos”, [por isso] estamos mais ou menos na altura e se calhar vai acontecer um grande terramoto.

Então, já não sei ao certo, mas já há pelo menos 15 ou 20 anos que tinha esta ideia de fazer um projeto sobre isso. O projeto chegou a estar escrito e reescrito, mas não tive financiamento na altura. Voltei a querer pegar no tema agora na transição de 2019 para 2020. Convidei o João Cândido Zacharias para escrever comigo, porque a ideia era minha só que eu gosto de escrever sempre em diálogo com alguém. Pegámos na ideia, mas foi com uma premissa completamente não ancorada na ciência, ou seja, a premissa era essa: “vai acontecer um grande terramoto”, seguíamos uma personagem que também era uma personagem feminina. Escrevemos muito rapidamente essa primeira versão e passado uns meses havia necessidade de voltar a pegar no guião e pensar em melhorá-lo [até] que leio uma notícia que falava da substituição dos cabos submarinos e de um grupo de cientistas que ia trabalhar com o governo.

FC: Da LEA?  [Listening to the Earth under the Atlantic]

RN: Da LEA, exatamente. Iam trabalhar em conjunto. Ou seja, o instituto de telecomunicações, a ANACOM [Autoridade Nacional de Comunicações], o governo e os cientistas estavam a trabalhar precisamente para perceber se nestes cabos submarinos iriam então instalar uma série de sensores ao longo desses milhares de quilómetros de cabos. Esses sensores iriam ter uma função inovadora: ao serem instalados nos cabos de telecomunicação submarina permitiriam obter dados em tempo real sobre uma série de áreas de ciência diferentes, desde a geofísica, a oceanografia, a sismologia, entre outras. Ao que parece é um projeto pioneiro em Portugal e no resto do mundo.

Eu pensei que isto pode ser uma coisa interessante: perceber se invés de eu avançar com uma premissa que não é factual, científica, vou falar com os cientistas e tentar perceber se este projeto que vai acontecer se pode cruzar com a minha ideia de ancorar então essa ideia numa coisa real.

FC: Colaboraste com eles in loco mesmo?

RN: Sim. Entrei em contacto rapidamente com eles. Falei com todos, entrevistei-os várias vezes, fizemos longas, longas conversas. Como coincidiu com a altura da pandemia teve ser tudo remoto. A dada altura percebi que eles também tinham interesse: interessou-lhes também ajudar-me a construir o guião, a apoiar a ideia. Até que, na verdade, há uma convergência na área científica da sismologia: acabou por haver um cientista que se destacou, o Luís Matias, que ficou como consultor científico do projeto, tendo dado, de facto, essa consultoria bastante rigorosa. Nós escrevíamos e reescrevíamos sistematicamente o guião e incorporávamos todas as notas e o feedback dele, que revia e dava notas e notas de forma que depois conseguíssemos construir todo o lado que era científico. O lado dramatúrgico, obviamente, todo o lado ficcional, da Marta e da relação dela com a família, isso não era alvo de revisão, mas tudo o que era científico para nós só fazia sentido que fosse 100% rigoroso.

FC: Porquê este título? O Melhor dos Mundos?

RN: Melhor dos Mundos é de certa forma um tema um pouco irónico, ou seja, isto é uma segunda camada para quem possa perceber um pouco mais da filosofia. O Leibniz, que era um filósofo do séc. XVIII, veio com uma teoria filosófica, um ensaio chamado “Teodiceia” em que tinha esta premissa de que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Partindo disso, o Voltaire escreveu um livro que se chama “Cândido, ou Otimismo” a parodiar essa teoria. A personagem do Cândido passa por tragédias inimagináveis e acaba sempre as frases ou os parágrafos a dizer que está tudo bem, “vivemos no melhor dos mundos possíveis”.

Na verdade, o mundo real é o melhor dos mundos possíveis, que é a frase do Leibniz. É o nosso mundo, é o único mundo que temos, pelo menos enquanto o Elon Musk não encontrar uma forma de irmos parar a uma outra galáxia (risos). Há aqui um cruzamento de várias temáticas, aquela coisa de “não há um Planeta B, nós temos só o Plano A, que é o nosso planeta”. É um bocado aqui um jogo de palavras.

FC: No filme a ética e a ciência colidem quando as personagens têm de decidir o que fazer com a informação sobre um possível sismo. Como é que foi o processo de desenvolver essas discussões éticas e a tensão progressiva que existe entre as personagens?

RN: Claro que o que interessava aqui era criar de facto um conflito entre duas partes, não é? Houve uma base também que me inspirou que foi “Um Inimigo do Povo”, que é uma peça do Ibsen. Há um médico que analisa as águas numa vila termal e deteta uma contaminação, obviamente noutra época, no século XIX. Toda a economia dessa vila gira à volta dos visitantes, dos turistas que vêm para essas termas. Ele vem informar que as águas estão contaminadas e por isso as termas têm de ser fechadas até se conseguir resolver o problema. Chama-se precisamente “Um Inimigo do Povo” porque é uma pessoa que vem confrontar o poder, todos os interessados que a informação não venha a público, com uma verdade inconveniente. Neste caso, a possibilidade de haver um grande terramoto é uma verdade inconveniente.

É difícil lidar com um tema tão forte. Interessava-nos que houvesse esse confronto entre os cientistas que se opõe a que essa informação passe para fora, porque, na realidade, se passar são eles que também ficam “em cheque” com as suas próprias carreiras. Acaba por ser muito difícil ter a coragem de dizer “mas, se acontece eticamente nós somos obrigados a passar a informação”.

Na escrita isso também foi discutido com todos os cientistas. Este tipo de discussão de facto existe.

FC: A narrativa envolve um casal de cientistas que também são parceiros na vida profissional. Como foi esse trabalho com a Sara Barros Leitão e o Miguel Nunes para construir esta dinâmica complexa entre a vida pessoal e a vida profissional? Isso teve influência na forma como foi feita a direção dos atores e a construção das suas personagens?

RN: Interessava-me, de facto, que a Marta, que é a protagonista, é sismóloga, tivesse uma vida, não é? Ou seja, todos os cientistas, todas as pessoas, independentemente da profissão que tenham, têm uma vida pessoal. Há um lado profissional, mas as pessoas, muitas vezes, transportam aquilo que são para a sua profissão, para a forma como vivem e como se relacionam com os outros. O caso da Marta acontece também em muitos meios em que as pessoas trabalham muito tempo juntas, por isso acabam por haver relações pessoais. Aqui há uma relação romântica entre a Marta e o Miguel.

Interessava-me transportar para a Marta esta questão de conflito com a relação, que espelhasse um pouco a forma como eles encaram a ciência. Isso percebe-se muito claramente naquela noite em que eles estão reunidos de emergência. A cisão que existe na relação deles passa para a vida profissional: uma coisa contamina a outra. Não é por acaso que eles, de facto, têm uma relação tão frágil, não é? Porque encaram a vida de uma maneira completamente diferente.

FC: Os disasters movies são dos subgéneros mais populares no cinema e esta longa-metragem desvia-se desse conceito ao colocar o foco na antecipação do fenómeno. Porquê colocar o foco nesta perspetiva?

RN: Porque, de facto, a mim não me interessava de todo explorar a vertente do tal disaster movie ou filme catástrofe. Não me interessava explorar o lado mais sensacionalista da questão, porque é isso que faz um filme catástrofe: explora a concretização da desgraça que, neste caso, seriam os prédios a caírem, as pessoas feridas e mortas…

A mim interessava-me mais explorar os dilemas éticos. Tudo o que acontece na antecâmara de uma grande tragédia e não a tragédia em si.

FC: Como as pessoas lidam com esta notícia?

RN: Sim. Na sessão com os miúdos eles perguntaram “mas, acontece?”. Claro que eles querem que aconteça, não é? (risos). É normal. Mas, de facto, mesmo que me dissessem “está aqui x dinheiro para fazeres um filme com a continuação do Melhor dos Mundos, onde vai acontecer o terramoto”. Eu pegava nesse dinheiro e fazia outro filme – que não seria esse (risos).

FC: Considerando que o filme reflete acerca de preocupações sobre catástrofes naturais e outras crises globais o que esperas que sejam as reflexões do público ao vê-lo?

RN: Cada pessoa vai levar para casa a sua própria reflexão, mas acho que se calhar há uma reflexão logo imediata que é, provavelmente, a questão da fragilidade da humanidade. Nós somos, de facto, muito, muito frágeis perante grandes acontecimentos. Não temos maneira nenhuma de os controlar, não temos controlo sobre as “grandes questões” que nos rodeiam.

Mesmo esta impotência que sentimos com as guerras que estão a acontecer neste momento: se há uma escalada maior, se a guerra se vai tornar nuclear… Nós não controlamos estas grandes questões. Somos mesmo muito pequenos.

FC: A minha pergunta seguinte vem mesmo nesse sentido. Ao vivermos nesta época onde as distopias e os cenários apocalípticos parecem mais plausíveis do que nunca como é que vês o papel do cinema na abordagem e reflexão deste ambiente de incerteza global?

RN: Acho que o cinema pode ser um espelho. É o que acontece, não é? Em quase todas as coisas que são feitas. Quer sejam mais artísticas ou menos artísticas, nós somos, de certa forma, um espelho do mundo que nos rodeia.

Acho que temos um papel de fazer com que as pessoas reflitam sobre o mundo em que vivemos. Cada um tirará as suas conclusões (risos).

Nós estávamos a falar disso ao almoço: acho que é importante que as pessoas tenham a informação. Quanto mais informadas estiverem melhor poderão tomar decisões sobre as suas vidas e sobretudo também não limitar a vida dos outros, porque, às vezes, esta tendência para os Estados totalitários e de direita o que no fundo fazem é retirar a liberdade individual.

FC: Quanto mais ignorantes as pessoas forem melhor?

RN: Exato. Eu acho que a importância que este tipo de cinema tem é o de fazer falar e perceber que a informação e a transmissão da informação é muito importante. A informação tem de chegar às pessoas: sem deturpação, sem fake news… Daí que ela [Marta] vai à televisão, pois é importante ir à televisão e ela própria saber informar.

FC: Mas, ainda aí se verifica por parte do jornalista um certo sensacionalismo a abordar a questão.

RN: Claro, claro, porque é isso também um bocado o reflexo do tipo de imprensa que nos temos atualmente nalguns casos.

FC: Para terminar, – não sei se podes efetivamente responder a esta pergunta – mas há perspetiva de próximos projetos para o futuro?

RN: Sim, esperemos que sim, não é? (risos). Estou a trabalhar para isso neste momento. Em vários concursos estou a concorrer com novos projetos, mas ainda a financiar.

FC: Ainda em fase de construção?

RN: Sim, em fase de financiamento ainda. Ainda nenhum deles com “luz verde”, como se costuma dizer. Mas, a caminhar para isso. Esperemos.

Entrevista Realizada por Sofia Alexandra Gomes | Assistida por João Iria e Sara Ló

Transcrita e Editada por Sofia Alexandra Gomes

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