Entrevista | Pedro Souto e João Monteiro – Directores Artísticos do MOTELX

de Pedro Ginja

A caminho de mais uma edição do Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa a iniciar-se no dia 6 de Setembro, reunimo-nos com os diretores artísticos do MOTELX, João Monteiro e Pedro Souto, numa conversa em que se discutiu a evolução do festival e do seu público ao longo desta década e meia de história, o futuro do cinema de terror português e a necessidade do festival procurar uma representação mais abrangente no seu programa. Houve ainda oportunidade para partilhar algumas histórias caricatas e momentos marcantes vividos num dos festivais de cinema mais importantes em Portugal.

Fio Condutor: O Motel X celebra este ano a sua 16ª edição. Ao longo de todos estes anos, quais foram as maiores transformações que sentiram e os momentos-chave do Festival?

João Monteiro: O segundo ano foi importante, tivemos a visita do Zé do Caixão que deu uma maior atenção mediática ao festival. Saímos em capas de suplementos, aumentamos o público e, de repente, começámos a existir. Depois foi o primeiro ano do warm-up, que temos vindo a repetir e a consolidar, tornando-se uma parte integrante do festival, já não é possível imaginar o festival sem o warm-up. E claro, 2019 [risos], por razões óbvias. É um ano que, embora não encerre o primeiro ciclo do festival, os anos de pandemia foram diferentes por todas as condicionantes e ainda estamos, como toda a gente, a recuperar dessa paragem – não nossa, dado que o festival se manteve – mas do resto do mundo. Existimos numa versão mais simples, mas as coisas que existiram durante esses dois anos acabaram por ser importantes para o futuro do festival. Voltámos a fazer programações especiais, que já não fazíamos há algum tempo, portanto o futuro do festival passará um pouco por um misto deste modelo antigo e o novo.

Pedro Souto: Ao longo destes anos uma série de personalidades, os chamados mestres do terror, que passaram pelo festival também ajudaram a criar a ideia que num festival durante os primeiros dias de Setembro, as pessoas podiam conviver com estas lendas vivas como George Romero ou John Landis, Stuart Gordon ou o próprio Dario Argento. Houve também uma tentativa de trazer novos valores, realizadores que estavam a dar os primeiros passos já com grande consistência, como foram Eli Roth e Leigh Whannell ou mais recentemente o Ari Aster com Midsommar (2019). No terceiro ano incluímos o prémio para Melhor Curta-Metragem Portuguesa e a Secção Quarto Perdido, uma secção de arquivo que nos focou bastante em estimular cada vez mais a produção nacional, quer seja com novos filmes, quer seja com revisitações a filmes mais antigos, perdidos ou filmes mais desconhecidos da filmografia portuguesa. Portanto, a par da presença internacional, com grandes mestres ou novos valores, tivemos essa preocupação para com o cinema português que deu mais conteúdo ao festival, e o sucesso é natural.

George A. Romero © MOTELX 2010

FC: Passadas 15 edições já está consagrado um verdadeiro sentido de comunidade no MOTELX. Como é que têm visto essa evolução no público ao longo dos anos?

JM: Todos os anos descobrimos pessoas que vêm desde o primeiro ano ao festival, que é super fiel desde a primeira edição. Vamos crescendo de público, diferente, em 16 anos já temos uma mudança de geração, já provavelmente temos os filhos de pessoas que vinham ao festival nos seus primeiros anos. É sempre interessante porque é um público sempre muito heterogéneo: de todas as raças, orientações sexuais, credos. E é muito divertido ver avós com netas, mães e pais com os filhos, mostra que a sociedade também evoluiu ao longo destes anos e o público também mudou. Essencialmente continua a ser um festival que tem um ambiente muito interessante, as pessoas reagem muito às sessões e são uma parte integrante e essencial ao festival. Nós damos-nos ao trabalho de ver os filmes para programar, mas quem faz o festival é o público, sem ele já não existíamos.

PS: Há também um paralelo com a nossa equipa de programação [risos]. Obviamente os que estão aqui desde o início vão envelhecendo e o público também envelhece connosco, os gostos vão se transformando e claro que temos mais membros na equipa mais novos, tal como o festival também vai angariando pessoas mais novas, por isso acho que estamos num bom caminho.

FC: Qual é o vosso processo de seleção dos filmes que vão a concurso?

JM: Recebemos candidaturas espontâneas, há uma pesquisa também e pedimos alguns filmes, dado que todos temos relações especiais com as distribuidoras, que têm sempre filmes de terror. Somos cerca de 10 programadores que se dividem entre as diferentes secções e vamos vendo os filmes e vamos votando, parte sempre do nosso gosto pessoal e da nossa sensibilidade, que vão mudando ao longo dos anos claro, mas é um processo simples de discussão ou votação entre todos.   

PS: Todos os anos acrescentamos alguns critérios novos, há cada vez mais coisas a considerar além do nosso gosto pessoal e do impacto que o filme tem em cada um de nós. Isso, por um lado é um desafio, mas ajuda muito a desempatar, quando há indecisões pode-se trazer outros critérios para cima da mesa.

JM: A ideia é que no fim, seja o mais abrangente possível, de todos os géneros e sub-géneros, além de necessariamente o que nós gostamos, que acaba sempre por ser uma questão muito subjectiva.

PS: As vezes há opiniões individuais que conseguem convencer o resto do grupo, ou pelo menos que fazem acreditar e confiar que há algo de especial naquele filme. Essa é a parte gira da coisa, depois é mau é se correr mal e temos de levar com isso o resto do ano inteiro [risos].

FC: Vai haver o lançamento do livro “O Quarto Perdido do MOTELX”, que segundo as vossas palavras, “encerra uma década de pesquisa iniciada em 2009 à procura das raízes de um hipotético terror nacional”. O que conseguiram encontrar nessa pesquisa?

JM: Um cinema português de matriz folclórica, não só a nível de lendas e superstições, mas também de literatura, isto numa primeira fase, até ao 25 de Abril, há cerca de um filme por década, a produção é pouca. Depois disso passam a ser produções mais urbanas, que têm mais a ver com os desafios da cidade, mas continua a haver o chamamento do campo. No Quarto Perdido deste ano vamos passar O Convento (1995), O Fascínio (2003) e Coisa Ruim (2006), todos filmes presentes no livro, e todos têm em comum esse mesmo tema do choque entre o Portugal Ancestral e o Portugal Moderno. Isso é um tema muito forte nos filmes.

PS: Não fomos só nós que descobrimos estes filmes, todos os filmes foram descobertos em conjunto com o público quando começamos a secção em 2009 e fomos trazendo estes filmes ao Cinema São Jorge. A lista ficou agora completa, são mais de 25 filmes, maioritariamente longas-metragens, e convidámos 22 autores para escrever sobre cada um dos filmes, o que nos dá a possibilidade de colocar cada um dos filmes numa perspetiva temporal com o próprio presente. Penso que será um livro que irá atrair muita curiosidade e tem nomes como o Tiago Cavaco, Pedro Mexia, João Monteiro, Ana Filipa Rosário, e uma série de outros académicos, como o coordenador do projecto FILMar. Vai ser um marco que esperemos que possa inspirar outros estudos académicos, e principalmente os criadores e realizadores portugueses.

O Quarto Perdido do MOTELX © MOTELX 2022

FC: E o que anteveem para o futuro do cinema de terror português?

JM: É difícil responder. A pergunta é: o que nós antevemos para o cinema? Eu não sei o que o cinema vai ser daqui a uns tempos próximos, mas eu diria que há criadores e pessoas com interesse, imaginação e vontade de trabalhar só nesta área, e obviamente que em Portugal é muito complicado, mas o problema é um parcialmente das fontes onde vão buscar inspiração, muito americanas, algo à semelhança da música feita em Portugal nos anos 90’, cantada em inglês. Falta uma base de inspiração e fazer o cruzamento entre as novas tendências e a nossa história e o nosso contexto, algo que nos outros países é feito com alguma facilidade, mas também cá não temos uma industria nem profissionais só a trabalhar nisso e imagino que a coisa iria melhorar com o aparecimento das plataformas de streaming e as suas coproduções que acabam por empregar profissionais portugueses e que lhes dão uma escola que cá não existe, porque a que existe é muito autoral e pouco industrial. Temos tido a presença de muitos atores e produtores de Hollywood em Portugal, séries de ação, etc, isto vai resultar nalguma coisa, mas a questão é: haverão salas de cinema daqui a 5 anos ou será tudo apenas em televisão? A nossa experiência diz-nos que a situação não está nada fácil e a pandemia não ajudou. Os filmes não vão acabar, mas negócio em si vai mudar muito.

FC: Com o apoio da SCML, o prémio para Melhor Curta Portuguesa é o maior no país. Qual é a importância das Curtas-Metragens no Festival?

PS: Tem sido fulcral porque é também uma maneira de reunir num festival que tem um público participativo, interessado e muito interativo, aberto a vários tipos de proposta, e tentamos por isso oferecer essa variedade à programação, e que no futuro pode dar mais resultados, porque pode inspirar e dar a ideia que não há só um tipo de terror – até porque sempre notámos que toda gente tem ideias diferentes sobre o que é o terror, tanto o público como a equipa do festival. Portanto a ideia de trazer criadores e realizadores portugueses e desafiá-los a verem os seus trabalhos como filmes de terror, como já aconteceu com as curtas-metragens, tem sido importantíssimo. Depois há toda uma quantidade de sinergias, desde concursos de contos que já fizemos e posteriormente editámos em livro com outros convidados e levou esse escritor a outras participações com outros realizadores portugueses em outras curtas, até aos workshops de efeitos visuais ou duplos, tudo isso traz muito conteúdo e interesse, e motiva toda a comunidade. As curtas acabam por ser um dos motores do festival e o prémio ter o nome da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, dá-lhe mais importância e esse selo institucional, o que deveria deixar todos aqueles que já participaram no concurso de parabéns.

Prémio SCML © MOTELX 2022

FC: No concurso de Curtas-Metragens têm três realizadoras em competição. Esta é uma das prioridades do festival, de dar voz a quem não tem tido o espaço que lhe é devido?

JM: Sim, faz parte dos nossos desafios que aparecem todos os anos. Obviamente não andávamos ativamente a ignorar as realizadoras, até porque até há bem pouco tempo não havia muitas, mas tem sim havido um aumento substancial e tentamos ao máximo expandir e expor o trabalho das realizadoras e alargar o espectro ao nível da seleção, sendo que este ano temos uma mulher africana a competir, algo que tem sido difícil, e vamos ter trabalhos de países como a Tunísia, Luxemburgo, Eslováquia e Senegal. Procuramos assim novas vozes femininas, que começam a aparecer, que tragam a diversidade que mais do que nunca se tornou necessária. É sempre uma preocupação.

PS: Houve uma mudança de paradigma de há uns anos para cá, quando se começou a estar mais atento e com mais preocupação à necessidade de os programas serem mais proactivos em relação à escolha de filmes de realizadoras. No caso do cinema de terror, à semelhança do generalista, há uma ideia que é uma indústria maioritariamente constituída por homens, mas com este esforço que começou a haver em várias frentes começámos a notar que realmente não só iam aparecendo mais filmes realizados por mulheres, como também nos distribuidores internacionais havia também essa preocupação de dar espaço a essas vozes, e isso anula a ideia de que as quotas participativas não resultam. Não resultam se for só isso, no entanto se tivermos atento a todos os outros fatores e como a indústria se relaciona com eles não deixa dúvidas, nunca tivemos acesso a tantos filmes de terror realizados por mulheres e cada vez melhores e cada vez com mais direito a terem a oportunidade de fazerem maus filmes como os homens sempre fizeram [risos].

JM: É isso até que está a salvar o género, que não tinha necessariamente falta de originalidade, mas de sim de visões e sensibilidades diferentes. Há menos filmes controlados por fanboys sedentos de referências, algo que se viu explodir pós-Tarantino, e o foco volta a virar-se para a história e para a empatia para com as personagens, porque sem essas, o filme não resulta.

FC: Em relação à Secção Lobo Mau, qual é a importância desta secção para o público mais jovem e também para Portugal?

JM: Para Portugal é absolutamente essencial, não sei como iria sobreviver o país sem o Lobo Mau [risos]. O festival é dos 8 aos 80, não podemos chamar a terceira idade à força, mas as crianças sim [risos]. Sentimos que a sensibilidade dos miúdos é diferente hoje em dia, as imagens a que eles são submetidos todos os dias já lhes permite saber distinguir o que é verdade e o que é faz de conta, portanto o mais interessante é que o obstáculo de fazer uma secção infantil num festival de terror são os pais e os educadores que temos de convencer, porque pelos miúdos quanto mais forte, melhor.

PS: A expressão em termos de imagens em movimento com e sem história é 10.000 vezes mais presente na vida de um jovem e de uma criança do que era no nosso tempo, portanto é impossível de prever o que vai acontecer em termos de filmes e de novas ideias, novas narrativas e novas experiências estéticas do próprio cinema. A própria secção do Lobo Mau vai ter de pensar se está a evoluir com as crianças, porque é um mundo totalmente louco. A quantidade de conteúdo visual que um jovem ou criança consome hoje em dia diariamente, altera qualquer perceção e altera os seus gostos e a maneira como se vai relacionar com os filmes, e como é que vai decidir quais é que gosta e quais não gosta. Para nós também é importante termos contacto com essa criatividade e por isso incluímos muitos workshops onde podem sair com um objecto ou um filme feito por todos e para nós também é bom estar em contacto com isso, principalmente para os programadores sem filhos, pode ser muito importante termos essas novas visões.

FC: Qual foi uma experiência ou momento marcante para vocês no festival?

JM: Os momentos marcantes acabam sempre por ser estas experiências que tens com as pessoas com quem cresceste a ver filmes, todas elas proporcionavam essas histórias e essas memórias, cada ano tem os seus.

PS: Eu partilho dessa opinião. É difícil dizer, porque uma coisa que nos marcou muito nos primeiros anos, marcou por ser naquele período específico, não quer dizer que tenham sido os mais importantes desta longa caminhada de 16 anos mas é como a infância: os primeiros grandes momentos que acontecem no início da vida são os que ficam mais marcados. Lembro-me perfeitamente da apresentação do Zé do Caixão, no palco do salão Manoel de Oliveira a apresentar-se ao público e a prever que o festival ia ser um grande sucesso – algo que nós pelo menos tomámos como um bom presságio e um bom elogio. E também no quarto ano quando fomos buscar o George Romero ao aeroporto [risos].

JM: Houve uma situação de uma cópia que ia ser usada numa sessão às 21h, tínhamos casa cheia, mas a cópia não foi verificada corretamente e o que passou era uma cópia inacabada, faltava-lhe pós-produção e ainda hoje não sabemos o que aconteceu. Foi marcante porque, não só o realizador, que estava na audiência, foi impecável, como ninguém do público se levantou e foi embora ou reclamou, as pessoas aceitaram simplesmente aquilo e até acharam graça. A verdade é que sempre que acontecem estes disparates – à exceção de um motim que ia havendo por causa do Jodorowsky (não pelo público do festival) – este público é o melhor, é o mais incrível que podíamos pedir e nunca nos abandonaram.

PS: Têm até recebido muitos elogios do próprio Cinema São Jorge, que adora o público do MOTELX, pela sua civilidade e boa-disposição e pela sua paixão pelo cinema. Portanto, para ti público, OBRIGADO!

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O Warm-Up do MOTELX vai já arrancar nos dias 1, 2 e 3 de Setembro com sessões de cinema e diferentes eventos espalhados pela cidade de Lisboa. O Festival irá decorrer entre os dias 6 e 12 de Setembro no Cinema São Jorge, com destaque para a estreia do novo filme de Dario Argento, Dark Glasses (2022), com a presença do lendário realizador italiano no festival.

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