No âmbito da 11ª edição do Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival, a programação das sessões escolares revela-se um elemento de destaque, reunindo em 2024 cerca de 2000 estudantes num encontro enriquecedor com o cinema e a diversidade cultural mediterrânica. Este número expressivo destaca o impacto e o alcance do festival na formação e sensibilização de jovens, possibilitando que diferentes faixas etárias explorem temáticas contemporâneas e universais. Neste sentido, a coordenadora pedagógica Patrícia Sá partilha o processo de preparação dessas sessões, que envolve desde a seleção criteriosa de filmes e elaboração de materiais de apoio até ao contacto com realizadores/as e à articulação com parceiros. Esta entrevista aprofunda os objectivos e desafios desta vertente educativa, evidenciando o papel transformador do cinema na promoção de uma consciência crítica entre os mais jovens e na criação de pontes culturais no espaço mediterrânico.
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Fio Condutor: Para a edição de 2024 do Festival Olhares do Mediterrâneo, o programa de sessões escolares é bastante diversificado e conta com a participação de aproximadamente 2000 alunos/as, o que é um número significativo para um festival de cinema. Como funciona o processo de preparação para uma coordenadora pedagógica num Festival de Cinema?
Patrícia Sá (Coordenadora Pedagógica do OM): É um trabalho que envolve uma série de etapas ao longo de, aproximadamente, dez meses. Quando começámos a propor às escolas as nossas sessões (em 2016, estávamos na 3.ª edição), não imaginávamos que o seu crescimento fosse tão rápido! Começámos com sessões apenas para crianças entre os 8 e os 11 anos (3.º ao 6.º ano) e para o Secundário, actualmente, temos sessões para todos os anos de escolaridade (1.º ao 12.º).
Voltemos ao processo de preparação, que se inicia com o visionamento e selecção dos filmes, o que demora entre 4 a 5 meses. São elaborados materiais pedagógicos para os professores e contactamos realizadoras que possam estar presentes para conversarem com o público após as sessões. A partir de Setembro, em parceira com o Plano Nacional de Cinema, que nos apoia desde o início, e com o Cinema São Jorge, dá-se início a todo o processo logístico e de divulgação. Depois do festival, fazemos uma reflexão sobre o que correu melhor e pior e o que podemos melhorar no ano seguinte.
FC: Que impacto têm observado na sensibilização dos/as jovens para as temáticas dos filmes?
PS: É sempre difícil medir o impacto que as sessões têm nas crianças e jovens. É bem sabido que, mais do que nunca, os miúdos têm um acesso quase ilimitado à informação, mas que ainda não têm ferramentas para a contextualizarem e processarem. Esperamos, claro, através da nossa programação, oferecer uma oportunidade para os alunos entrarem em contacto com diferentes culturas, realidades e perspectivas. Esperamos que, depois, com o trabalho que é feito em sala de aula, as nossas sessões tenham um contributo significativo para o desenvolvimento do pensamento crítico e consciencialização sobre questões sociais.
FC: Qual o papel do cinema no desenvolvimento de uma consciência crítica nas crianças/jovens? Há algum exemplo concreto de uma mudança de mentalidade que tenha surgido através do festival?
PS: O papel do cinema é fundamental no desenvolvimento da consciência crítica. Quando, por exemplo, passamos um filme para um público entre os 8 e os 11 anos sobre uma aldeia em que as crianças só podem ir à escola quando tiverem altura para atravessarem o rio ou sobre três crianças que percorrem, em liberdade, as ruas de Trípoli esperamos que isso contribua para que elas se interessem por outras culturas e que sintam curiosidade pela diversidade que temos neste espaço, o Mediterrâneo, tão próximo geograficamente, tão rico e diverso. Mais do que nunca, as escolas portuguesas estão a receber crianças de todo o mundo que trazem consigo a sua diversidade e riqueza cultural. É absolutamente urgente que as crianças e jovens compreendam que vivem num mundo com muitas culturas diferentes e formas de estar e que é na curiosidade em perceber o outro e na generosidade de se dar a conhecer que eles podem fazer a diferença. É aqui que se enquadra o desenvolvimento de uma consciência critica nos alunos.
FC: Este ano, o festival Olhares do Mediterrâneo destaca a Palestina como país convidado. Isso também se reflete na seleção dos filmes para as sessões escolares? Que tipo de narrativas as escolas podem assistir?
PS: Há uma co-produção da Palestina, Egipto e Jordânia, que integra a sessão do 3.º ciclo, sobre uma criança que é vítima de assédio por parte do seu treinador. Curiosamente, e logo este ano, os filmes que chegaram da Palestina, por uma razão ou por outra, não se adequavam ao público escolar, mas vamos ter (para o 3.º ciclo e secundário) um filme do Líbano, passado em Beirute, sobre uma jovem que luta para ter uma adolescência “normal” num ambiente absolutamente caótico que penso que vai ter um bom acolhimento por parte dos alunos. Passámos, em 2016, a curta “A very hot summer”, do colectivo Shashat (Palestina) que impressionou muito os alunos do ensino secundário e que aguçou a sua curiosidade sobre esta questão.
FC: Há muitos temas contemporâneos, como a guerra, migrações ou questões de género que podem ser percepcionados como demasiado complexos, mesmo para um público adulto. Que estratégias pedagógicas são utilizadas para contextualizar essas temáticas ao público jovem?
PS: Na minha opinião, nenhum tema é demasiado complexo, depende da forma como é abordado e do encadeamento da sessão. Já aconteceu não incluir filmes excelentes, porque, por algum motivo, não se encaixavam harmoniosamente com os restantes. Dada a idade do público, é preciso um equilíbrio nem sempre fácil de conseguir. Por exemplo, na sessão entre os 8 e os 11 anos devo ter em conta que nem todos os alunos conseguem ler fluentemente as legendas. Com os mais velhos, procuro alternar entre filmes mais duros e outros mais leves. Não podemos ter uma sessão com cinco ou seis curtas metragens demasiado duras ou demasiado leves, é preciso um equilíbrio.
A questão do espaço em que vão ver a sessão também deve ser tida em conta. Numa sala de aula, o professor pode parar a projecção de um filme se, por exemplo, reparar que um aluno está verdadeiramente perturbado, numa sessão com 700 alunos isso é impossível e, se por um lado, a sala de cinema convida à concentração, por outro, a excitação da visita de estudo, de saírem da escola são elementos distrativos. Tudo isto tem de ser pesado na programação.
FC: Como é que os filmes são selecionados para as diferentes faixas etárias, e de que forma o contexto pedagógico é considerado durante o processo de curadoria?
PS: A seleção de filmes para diferentes faixas etárias em festivais de cinema é um processo delicado que requer uma cuidadosa consideração de diversos fatores, como expliquei na pergunta anterior. Temos optado por fazer sessões com curtas metragens porque isso nos permite abordar uma série de temas e também porque, com tantas crianças ou jovens a assistir há mais tendência para a dispersão.
O objectivo é garantir que os filmes escolhidos sejam estimulantes para o desenvolvimento dos jovens espectadores. Temos em conta, para além da faixa etária, claro, os temas e conteúdos, a linguagem audiovisual utilizada e os valores e mensagens. Temos uma relação próxima com alguns professores: já aconteceu, por exemplo, eu ter dúvidas sobre determinado filme e enviá-lo a um grupo de professores para me darem a sua opinião.
Por fim, mas acima de tudo, a qualidade artística, claro. Fico muito contente quando um dos filmes escolhidos para as sessões escolares é premiado pelo júri.
FC: Quais as actividades, exibições ou eventos que a entusiasmam mais nesta edição para observar resultados?
PS: Relativamente às sessões escolares, este ano, temos a novidade de uma sessão na Cinemateca para o ensino secundário; penso que vai ser uma oportunidade excelente para os jovens visitarem um espaço tão especial. Como co-directora, sem dúvida a mostra de cinema da Palestina que vai ter lugar na Cinemateca entre os dias 4 e 7 de Novembro, é uma mostra necessária, urgente!
FC: Quais são as principais aprendizagens e desafios que surgem na mediação destas sessões com o corpo docente e discente?
PS: Eu sou professora, por isso conheço bem a dinâmica dos estabelecimentos de ensino, o que ajuda bastante. Penso que o maior desafio é programar sessões que, ao mesmo tempo, sensibilizem, abram horizontes, mas que também divirtam.
FC: Quais os principais feedbacks que recebem dos professores e como estes influenciam a programação das sessões futuras?
PS: Eu diria que o principal e mais motivador feedback é o regresso das escolas no ano seguinte. Temos escolas que vão desde a primeira edição das sessões escolares, temos professores que mudam de escola e levam consigo os Olhares. De facto, até agora, o feedback tem sido sempre muito positivo o que nos dá muita satisfação, mas também um enorme sentido de responsabilidade.
Não quero deixar terminar esta entrevista sem agradecer o vosso interesse e a pertinência das questões colocadas.
Entrevista realizada por Sara Ló e João Iria