Durante a 17ª edição do MOTELX – Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa, o Fio Condutor teve a oportunidade de entrevistar Paris Zarcilla, o cineasta responsável pela longa-metragem Raging Grace (2023), uma das narrativas candidatas ao prémio Méliès d’argent, acerca de Joy, uma mulher Filipina imigrante no Reino Unido à procura de uma vida melhor, forçada a esconder a sua filha dos seus patrões para poder prosseguir no seu trabalho como empregada de limpeza. Uma das maiores surpresas do festival, acerca da experiência imigrante, as consequências emocionais e físicas do colonialismo, e a sensação libertadora que a raiva consegue providenciar a pessoas desta comunidade.
Raging Grace estreia brevemente no serviço de streaming nacional da FilmTwist.
Fio Condutor: A primeira pergunta é a mais óbvia mas necessária. Como é que nasceu este projecto que sente-se como uma história muito pessoal?
Paris Zarcilla: A Génese do filme iniciou em 2020. Como sabes, foi um ano muito tumultuoso para todos e penso que, para muitos de nós, foi um tempo muito introspectivo. Para mim, depois de beber todas as bebidas nas prateleiras e de ver todos os filmes que tinha guardado, comecei a fazer perguntas a mim próprio, o que resultou numa crise existencial. Quem sou eu? Porque estou a fazer o que estou a fazer? Sinto-me sem propósito. Tive uma crise de identidade. Comecei a questionar a minha educação. Os meus pais são imigrantes de primeira geração e vieram de um lugar de sobrevivência. Muitas das suas lições (para mim) baseavam-se em assimilar; não destacar-se, ter boas notas e não criar problemas; simplesmente manter a cabeça em baixo. Eu passei 30 anos da minha vida com essa ideia na minha mente e tudo o que fiz foi ter boas notas, tudo o que fiz foi procurar aprovação branca. Rejeitei a minha língua materna e a minha herança cultural. E compreender tudo isso foi como um tsunami de grande vergonha. Uma vergonha incineradora que me fez sentir como se eu tivesse traído a minha cultura. Ao mesmo tempo, nos Estados Unidos e no Reino Unido cresceu o ódio asiático. Temos um governo com uma retórica tóxica contra imigrantes. Os mesmo imigrantes que estavam a trabalhar para a NHS, o serviço nacional de saúde do Reino Unido, durante a pandemia, estavam a morrer. Uma maioria eram Filipinos. Parecidos com a minha mãe, com os meus tios. Sinceramente, tudo isso despertou uma raiva que sentia-se perigosa. Se eu não fizesse nada acerca dessa raiva, iria fazer algo parvo. Então agarrei nessa raiva e coloquei-a na página de Raging Grace.
FC: É interessante pois Raiva é um sentimento associado a toxicidade e negatividade no cinema. Contudo, aquilo que Raging Grace faz é representar raiva como algo libertador. Uma das maiores cenas no filme ocorre num momento de raiva para a protagonista. Uma raiva que a liberta. Como diferenciar essa raiva nesta história?
PZ: Sinceramente diria que este é o meu “coming of rage”. O que senti neste período foi o seu perigo, o seu ardor; senti que estava finalmente a ter permissão para libertar-me. Sinto que existem tantas pessoas na nossa comunidade, tantas pessoas de cor que vivem com uma mente colonizada. Estão aprisionadas pela sua educação, pela sua sociedade. Para pertencer é necessário contorcionar nos em formas desconfortáveis. Muitas pessoas sentem esta raiva e não sabem como expressá-la. Contudo, preocupa-me pois a raiva é corrosiva, mas a razão porque é importante expressar esta raiva é devido aquilo que também entrega-nos. Felicidade. Uma celebração de quem somos. Da nossa cultura. Que não precisamos de permissão. Nós, como comunidade nascemos de guerreiros, nascemos do fogo. Os colonizadores utilizaram o fogo para incendiar a nossa linguagem e a nossa cultura mas não consegues queimar o que está sempre a arder. Não consegues. E quero que esta incorporação da raiva recorde as pessoas do fogo que sempre nasceu com elas, para reacender o que foi possivelmente negado as suas vidas inteiras. Libertação, o regresso a casa. É isso que esta raiva é.
FC: Existe uma forte presença religiosa no filme. Para as protagonistas parece funcionar como esperança num mundo sem esperança, como um aspeto cultural significante que as permite mover.
PZ: O colonialismo vive em todos os aspectos deste filme, incluindo nas próprias personagens. A Joy, a Grace e a Gloria rezam nos ideais do Catolicismo, e isso faz parte do Colonialismo. Como mencionei, a colonização surgiu do fogo, que surgiu dos Espanhóis que forçaram a religião e o Catolicismo no nosso povo. Isso ficou tão imbuído na cultura Filipina, que de certa maneira tornou-se místico e misturou-se com os aspectos tribais da nossa cultura. O colonialismo ficou tão enraizado que rescreveu a nossa linguagem e a cor da nossa pele, literalmente. Queria explorar muito mais esse aspecto, mas não é possível num filme de 100 minutos, por isso vemos estas ideias nas imagens. Quando a Gloria está escondida numa caixa de madeira, ela está a usar um Barong, um vestido tradicional Filipino mas profundamente inspirado pelos trajes espanhóis destes tempos. Até a merda da palavra Filipino é derivada do nome do Rei Filipe. Significa Pequenos Filipes. Está nas nossas mentes. O colonialismo existe desde o momento em que nasces, desde que o teu nome é escrito; está na tua certidão de nascimento, no teu passaporte. É um tema que quero explorar num próximo filme, pois antes sequer de conseguires confrontar o cerne da questão, existe outra maior atrás de ti. Onde começas? Como? Como reconciliar com o facto de teres sido colonizado e de beneficiares com esse colonialismo? Estás aprisionado a este mas vives neste. As correntes do colonialismo podem ter sido utilizadas há 400 anos, mas nunca nos deixaram. Para muitos de nós, continua connosco. Esta geração está a esforçar-se para quebrar essas correntes. Esta é a história de Raging Grace.
FC: Existem tantas ideias e temas explorados em Raging Grace. Como balançar esses temas num único filme para uma audiência pouco familiar com os seus aspectos culturais?
PZ: Quando comecei a pensar naquilo que queria dizer no meu trabalho tive de compreender, ao mesmo tempo, que existem limites para aquilo que conseguimos dizer. Por isso, qual é o mundo onde (estas personagens) vivem? Como é que (elas) estão a tentar pertencer num mundo tão hostil perante a sua existência? Essa fundação revela imenso acerca das macro e micro agressões e os problemas subjacentes de uma sociedade que é construída para não sobreviveres, ou floresceres. É sobre o que uma mãe procura fazer numa situação desesperada. A questão é que, quando lidamos com temas grandes, temos de dar crédito à audiência. Existem temas tão grandiosos que (inevitavelmente) vai existir uma base de conhecimento (no espectador), e tudo o que temos de fazer (como criadores) é adicionar à informação existente e criar um contexto inteiro desta personagem, da sua relação com a sua filha, dos corpos brancos desta mansão que representam o poder velho e novo, mas também o país imponente que vivem. É sobre tentar dizer o máximo que conseguires com o mínimo de palavras possível e encontrar o momento onde a explicação é liderada pela emoção. No final do dia, permanece uma experiência humana. Sim, o aspecto cultural e a sua história de colonialismo é específico mas todos compreendem a sensação de serem desprezados, manipulados, e de sentirem-se aprisionados, como se não pertencessem. Todas estas ideias surgem naturalmente quando estás a ver o filme. Quando tens isto tudo internalizado, estás apenas a responder aquilo que está na página. Esse foi o meu processo, pelo menos. É o que parece natural neste momento na história. Ao mesmo tempo é confrontar as minhas expectativas daquilo que eu queria que acontecesse, contra aquilo que sei que não aconteceria. Ir contra a maré, enquanto mantenho a autenticidade das personagens. Uma resposta grande para uma pergunta grande (risos).
FC: Numa história que lida com esperança num futuro melhor, como encontrar esperança num mundo sem esperança, tanto da perspectiva de criador como do ponto de vista de um espectador?
PZ: A esperança surge de diversas formas. É necessário recordar que a esperança não é uma promessa. Não é uma promessa que as coisas vão melhorar. A esperança é uma crença que as coisas podem melhorar. Nunca é uma garantia. Mas às vezes essa crença consegue ser poderosa o suficiente quando surges de um lugar sem esperança. Que as coisas podem melhorar, podem ser diferentes, consegue ser a diferença entre a morte e a vida, literalmente. Infelizmente, parece fácil mostrar um pequeno pedaço de esperança e sentir este como um final feliz, quando as personagens habitam num mundo tão hostil contra elas, o que é uma reflexão do mundo real. Eu nunca quero subestimar a resiliência da audiência e o seu desejo de ver um final feliz. É inerente a todos. Falar sobre como balançar (essas emoções) é complicado de expressar em palavras pois é tão intuitivo mas está alinhado com aquilo em que acredito. Isso nem sempre ressoa com outras pessoas. Eu gosto de esperança. Precisamos de esperança. Mais do que nunca. É por isso que o filme precisava deste final. Não é o final mais feliz mas é agridoce e agridoce reflete a vida real.
FC: A tua curta-metragem anterior, Pommel (2018), explora personagens a lidar com pressão exterior e interior e a forma como esta afecta as suas relações e vidas pessoais. Um tema presente nesta longa-metragem, Raging Grace, onde pressão move a história e as personagens além dos seus limites.
PZ: A pressão é o que revela a verdadeira essência da personagem. Quando apresentas a uma personagem dois extremos, seja qual um desses extremos que ela decide escolher, essa é a sua verdadeira natureza. Se apresentares uma escolha entre um autocarro, em chamas, com crianças e um carro, em chamas, com a sua mãe, a qualquer pessoa, compreendemos imediatamente os seus valores. Na sua extremidade, mesmo numa escolha entre a vida e a morte, descobrimos aquilo que importa verdadeiramente a essa pessoa particular. Basta olhar para as pessoas que defrontam a morte iminente. Nesse momento, ninguém quer saber se o patrão gosta deles ou aquilo que os amigos pensam deles. Não querem. Várias vezes, o que torna-se claro (nestes momentos) é aquilo que verdadeiramente importa para eles. É isso que adoro na pressão como uma ferramenta para confrontar personagens reais. Vai estar sempre presente no meu trabalho, pois as escolhas mais interessantes são tomadas sob pressão.
FC: Em termos de reações exteriores e interiores, como tem sido a experiência de apresentar um filme muito pessoal pelo mundo inteiro?
PZ: Tenho andado a viver com uma profunda ansiedade e terror há algum tempo. Quando a maioria da tua vida é acerca de tentar agradar outras pessoas e ter medo de expressar como te sentes verdadeiramente, criar um filme destes que confronta directamente o colonialismo britânico; que desafia o poder branco em todas as suas formas. Existe uma parte de mim que pensa: “Oh Meu Deus! Vou ofender todos e todos vão odiar-me.” Isto é a parte fodida. É o colonialismo a afectar-me. Aprisiona tantos de nós e impede-nos de expressar desconforto; de sermos difíceis. E quando decidimos expressar essas emoções, somos mal agradecidos, somos desrespeitadores. Ter esse sentimento a existir enquanto apresentas um filme a audiências maioritariamente brancas é exaustivo. Tenho de lutar contra esta sensação sempre que subo a um palco para um Q&A ou para apresentar o filme. Céus, estar numa posição em que tens de explicar constantemente como a tua experiência de vida te faz sentir ou o quanto desconfortável te sentes… É como ter de explicar a minha existência. (pausa) Peço desculpa, perdi-me no meu raciocínio.
FC: Acho que é natural essa reação, pois como realizador e sendo um filme pessoal, existe esta necessidade e desejo que o filme seja bem recebido enquanto ao mesmo tempo, existe este aspecto em que queres lutar contra a necessidade de aprovação.
PZ: É assim que eu me sinto, contudo, o propósito deste filme é mover a conversa em frente. Eu quero expressar-me autenticamente, sem este medo. Não querendo apontar o dedo, mas a querer perceber como podemos melhorar esta situação. O meu filme nunca foi suposto ser didático. Não queria ensinar lições a ninguém. Queria mostrar uma experiência vivida numa forma autêntica. Mas tenho de admitir, que tem sido um dos maiores desafios da minha vida e nunca me senti tão cansado. Tendo dito isto, compreendo a importância da sua mensagem. Viste o homem que veio ter comigo, antes da entrevista? Ele estava em lágrimas. Não conseguia controlar as suas lágrimas. E ver um filme destes a ter um impacto (emocional) num homem branco com cerca de 50 anos. Isso dá-me energia para continuar. Igualmente, são as lágrimas da minha audiência pretendida; as pessoas que nunca tiveram voz e que nunca se viram representadas (no cinema). Esse é, para mim, o prémio. Mas está a custar-me bastante.
FC: Agridoce como mencionaste.
PZ: Sim.
FC: Raging Grace destaca-se como um dos primeiros filmes deste ano, com um elenco principal Filipino, a obter atenção mundial. Quero aproveitar este momento para saber um pouco mais dessa história cinemática cultural e pedir recomendações de obras criadas por artistas Filipinos para as audiências descobrirem.
PZ: Raging Grace foi o primeiro filme Britânico-Filipino na história do cinema britânico. Nunca existiu um. É extraordinário mas trágico ao mesmo tempo. Odeio ser o primeiro. Mas mesmo assim, estou aqui graças a uma comunidade inteira que lutou tanto por ser reconhecida. Devemos imenso à comunidade afro-americana e à comunidade britânica negra, que fizeram tanto para que o cinema de perspectivas únicas existisse. O cinema que sai das Filipinas, ou de qualquer país, é único para esse espaço. É algo incrível e lindo. As histórias em que estou interessado são as de diáspora. Aquelas que saem de casa quando não têm escolha de ficar. Adoro essa exploração. Adoro Diane Paragas, uma realizadora Filipino-Americana, que fez Yellow Rose (2019); Isabel Sandoval que fez Lingua Franca (2019). Um filme lindo. Elas fazem um trabalho fantástico nos EUA e apontam os holofotes a histórias que nunca foram contadas. Sinto-me encorajado pelos seus trabalhos. Mas é uma viagem complicada, para todos nós. Mas… Adoro isso. Sinto imenso respeito por elas. Elas dão-me esperança que consigo viver nesta indústria e que consigo florescer nesta. Porque para muitos de nós, operamos somente através da necessidade por sobrevivência. Mas isso vai mudar, porra. Vai. Porque eu digo que vai.
Esta entrevista foi realizada, transcrita e traduzida por João Iria
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