Juan Carlos Fresnadillo passou por Matosinhos no dia 24 de março enquanto convidado da edição de 2024 da Comic Con Portugal.
O Fio Condutor, em âmbito de conferência de imprensa partilhada com outros meios, teve a oportunidade de falar com o realizador espanhol cuja obra inclui sucessos recentes como Damsel (2024), a curta-metragem nomeada aos Óscares Esposados e o thriller de ficção científica 28 Weeks Later (2007).
Fresnadillo falou, abertamente, sobre o seu percurso, a sua necessidade de estar envolvido em todos os detalhes da produção cinematográfica, a importância de um bom guião e de uma boa equipa, e, também, sobre o sonho de produzir um thriller romântico na tradição dos seus ídolos de infância, Hitchcock e Buñuel.
Seguem-se, em formato de entrevista, as perguntas e respostas feitas pelo Fio Condutor durante esta conferência de imprensa, focadas principalmente no método de produção Netflix e no seu mais recente filme para a plataforma, Damsel, que conta com Millie Bobby Brown, Robin Wright e Angela Basset no elenco.
Damsel, que foi parcialmente filmado em Portugal, e estreou na Netflix no Dia International da Mulher, conta a história de Elodie, a filha de um lorde que, a troco de uma recompensa financeira que irá salvar o seu povo faminto, decide oferecer a mão da filha em casamento a um reino próspero e rico. O que Elodie não sabe é que o casamento esconde um segredo de família sombrio que a obrigará a lutar pela sua vida.
Fio Condutor: Como foi o processo para fazer Damsel e a que ponto o Juan Carlos se junta ao projeto? O guião já estava terminado?
Juan Carlos Fresnadillo: Eu leio o guião de Damsel em 2018 e, depois de um ano em que o guião anda às voltas até se registar a versão final, volto a incorporar-me no projeto em 2019. Desde o momento em que li o guião pela primeira vez, senti que havia algo que me fazia vibrar na história, que tinha a ver com a revisão do conto clássico de fantasia que a mesma propõe.
Foi um total de cinco anos de trabalho no projeto. Um filme de fantasia desta escala é muito complexo tecnicamente, daí ter durado tanto tempo, para além de que fomos afetados pela pandemia a meio do processo e tivemos que parar, basicamente. Mesmo assim, no final, creio que todo este tempo que tivemos, tanto eu como as equipas técnica e criativa, foi precioso para cuidarmos, até ao último detalhe, de todos os processos de produção.
Um dos principais desafios nesta história era dar vida ao dragão e realmente demorou vários anos de trabalho plano a plano. Era um dos elementos mais importantes desta história que foi preparado ao detalhe.
FC: Sentiu-se apoiado por parte da Netflix? O Juan Carlos sente que é necessário um streamer como a Netflix para receber o tipo de valor de produção que um projeto como este pede?
JCF: Sem dúvida. O apoio da Netflix foi definitivo para podermos estar tanto tempo a trabalhar neste filme e podermos ter os recursos necessários para o levar a cabo. Além disso, criativamente, deram-nos, a todos os que estiveram envolvidos na produção deste filme, o espaço necessário para o poder concretizar a partir de um lugar que realmente me parecia muito interessante.
FC: O Juan Carlos mencionou que gosta de estar envolvido em quase todos os aspetos do processo de produção. Esteve de alguma forma envolvido no scouting das localizações para a filmagem? Portugal teve concorrência? Estiveram indecisos entre Portugal e outros países? O que fez Portugal “ganhar a corrida” no final?
JCF: Penso que estava de férias aqui no ano de 2019 quando leio a versão final de Damsel e descubro em Portugal um estilo arquitetónico que, de repente, senti que era o estilo perfeito para o filme, que é o estilo manuelino, do gótico tardio, se não me engano. O estilo manuelino tem algo de exuberante e misterioso que o conecta, penso, de forma maravilhosa com os contos de fadas. E apaixonei-me. Apaixonei-me por esse estilo, apaixonei-me pelas paisagens de Portugal e, a partir de aí, iniciámos um processo – o diretor artístico do filme e eu – para convencer o estúdio de que a produção tinha que vir para Portugal.
Não era fácil porque havia outros países que ofereciam condições de rodagem muito boas, mas, felizmente, pudemos convencer a Netflix de que este era o lugar perfeito. Por todas as razões, não só pelo estilo manuelino, mas também pela luz, as paisagens, a exuberância… A beleza de Portugal era algo que encaixava muito bem com a ideia de que este reino de fantasia se tinha de apresentar como um lugar idílico, como um Jardim do Éden, onde, pouco a pouco, descobrimos as sombras e o segredo que nele habita, de alguma forma.
Parecia-me, também, que os locais onde rodámos, no [Mosteiro da] Batalha e no [Convento de] Tomar, eram perfeitos por terem todo o âmbito dos templários, que é tão misterioso e ancestral, e que encaixava perfeitamente com a história. Senti que o ambiente desses locais era o marco perfeito para a história. Fiquei ainda mais convencido quando fui à [Serra da] Estrela – e que maravilha de paisagem era a montanha de Portugal, que não conhecia! Foi aí que realmente ficamos convencidos de que Portugal era o sítio perfeito para filmar Damsel.
FC: O Juan Carlos já trabalhou em produções ou coproduções americanas, produções britânicas e produções europeias. Para si, qual é a principal diferença entre fazer filmes na Europa e em países como no Reino Unido e nos Estados Unidos, onde há uma tradição e história de estúdios de cinema tão grande e existem os meios financeiros para dar vida à sua visão?
JCF: Praticamente como a tua própria pergunta articula, nos Estados Unidos, na indústria americana, tens acesso a projetos mais ambiciosos, com orçamentos maiores, versus na Europa, onde talvez os orçamentos não sejam tão grandes. Então, há uma dinâmica nesta indústria que, quanto mais dinheiro tens para um projeto, pois, logicamente, a pressão é maior para obter um resultado que compense esse investimento.
Creio que na Europa podes obter mais liberdade criativa, mas a custo de ter piores orçamentos, enquanto que na América tens grandes orçamentos, mas a tua liberdade criativa tem que ser negociada. Eu penso que essa é a palavra-chave no momento de trabalhar com grandes orçamentos e com uma indústria como a americana – tens que negociar. E eu considero-me um bom negociador. Gosto de negociar, gosto de chegar a acordos com os produtores para realmente retirar o melhor do filme. Nesse sentido, não tenho qualquer problema.
Também te diria que é fantástico trabalhar na Europa e poder ter a possibilidade de explorar e desenvolver cenários e histórias com tanta liberdade. Por isso, sou otimista, construtivo, e creio que os dois lugares têm vantagens.
Trata-se, basicamente, de jogar em ambos territórios, que é um pouco o que decidi fazer com a minha carreira. Experimentar fazer projetos de indústria e projetos mais independentes. Como cineasta, interessa-me muito indagar ambos territórios. Creio que aplico o que aprendo num lado no outro, e isso permite-me ter uma variedade de histórias que me parece ser um pouco a minha marca e o que me distingue.
FC: Voltando a Damsel, uma das coisas que achei mais interessante no filme foi a presença de Robin Wright. Não sei o quão envolvido o Juan Carlos esteve no processo de casting, mas a atriz transporta-nos quase instantaneamente para [o filme do final dos anos 80] Princess Bride, principalmente porque Elodie também é uma princesa noiva. A escolha de Robin Wright para o papel da rainha malvada foi uma forma de referenciar esse filme e pintá-lo numa luz diferente? Uma forma de declarar que o seu filme é o “anti-Princess Bride”?
JCF: Sim, parece que, de repente, escolher a Princesa Buttercup [personagem interpretada por Robin Wright em Princess Bride] para fazer de rainha malvada é uma declaração de intenção de que vamos agitar o mundo dos contos de fadas. Mas, realmente, confesso que é uma coincidência.
Eu sou fã de Robin Wright. Não só por Princess Bride. Sou fã por Forrest Gump, sou fã por House of Cards… Por todas os filmes que Robin fez, creio que é uma das melhores atrizes da sua geração. Trabalhar com ela foi uma delícia.
A personagem desta rainha malvada [está pensada de uma forma que fornece] razões humanas para entender o porquê das suas ações. No fundo, é uma mãe a proteger o seu povo. Protegendo-o a partir de um lugar equivocado, um lugar atroz, mas, no fundo, é uma mãe protetora e, de alguma forma, esse tema está no filme. Creio que o trabalho de Robin reflete muito bem este aspeto. Portanto, por isso, é pura casualidade. Mas sim, é divertido pensar que a Princess Bride se converte na rainha malvada nesta história.
FC: Muito graças à Netflix, o cinema e a televisão espanhóis têm registado um grande aumento no espaço mainstream, enquanto que antes o país tinha cineastas muito interessantes, mas a um nível mais pequeno. Quando o Juan Carlos olha para o futuro dos media de entretenimento espanhóis, o panorama gera entusiasmo ou sente que há uma identidade que se pode perder? Obviamente, aqui em Portugal ainda estamos à espera desse impulso. Qual é a sua perspetiva em relação ao futuro, e considera que as plataformas de streaming ajudaram Espanha?
JCF: Penso que o surgimento da Netflix em Espanha se traduziu numa grande oportunidade de trabalho para muitos criadores. Creio que quando a Netflix aterrou em Espanha, estávamos num momento muito difícil, muito complicado, em que muitíssimos companheiros de profissão não tinham trabalho. Penso que foi uma mais-valia ter a Netflix e outras plataformas a chegar ao mercado audiovisual, a gerar conteúdo, e a dar trabalho a todo um grupo industrial muito grande. Creio que ativaram o tecido industrial e isso é algo a celebrar.
No que respeita as questões artísticas, penso que o mainstream, que é basicamente a linha de trabalho principal da Netflix, tem a possibilidade de poder exercitar uma série de cineastas. Por outro lado, a Netflix também tem outro tipo de produções que são, talvez, mais artísticas, mais pequenas, mais de nicho, que trazem, de igual forma, oportunidades à nova geração do cinema espanhol nesse âmbito.
Desta forma, sou muito otimista em relação às plataformas e ao que significaram para toda uma nova geração de cineastas e trabalhadores da indústria. Evidentemente, creio que, em paralelo, é importante continuar a cuidar da sala de cinema. Eu criei-me numa sala de cinema, consumi tudo o que era cinema quando era jovem, indo todos os fins de semana a uma sala. Acredito que há algo no ato coletivo de partilhar uma história que é profundamente comovente. Acho que temos de continuar a protegê-lo e a cultivá-lo para que os cineastas do futuro continuem a ter a oportunidade de desfrutar da história dessa forma.
FC: Em países como Portugal e Espanha, há uma perspetiva diferente em relação à Netflix. Nos Estados Unidos, no caso específico da Netflix, não estão interessados na experiência da sala de cinema, preferindo manter-se fiéis à sua marca, e lançar os filmes diretamente na plataforma. No entanto, é muito interessante pensar que, em Portugal e em Espanha, a Netflix deu espaço a mais criadores, enquanto que o método tradicional de distribuição prioriza outro tipo de projetos por serem mais rentáveis.
Nesse sentido, a Netflix trouxe mais democracia ao processo cinematográfico, o que é algo entusiasmante. Esperemos que o exemplo de Espanha se reflita em Portugal, eventualmente, porque o contexto de desemprego em Espanha que o Juan Carlos descreveu antes, também se sente aqui. Por isso, acredito que Espanha é um modelo a seguir.
JCF: Seguindo a linha daquilo que precisamente expões, realmente estou completamente de acordo contigo de que a Netflix gera um modelo mais democrático e sobretudo está a dar aso a projetos que, numa distribuição cinematográfica, seriam quase impossíveis.
Há um exemplo: A Sociedade da Neve, que é um filme em espanhol, sem estrelas, e que tem um orçamento gigante. Isso não teria acontecido numa estrutura industrial habitual. Nunca teriam dado esse dinheiro a Juan Antonio Bayona para fazer esse filme. O facto de a Netflix o ter feito deve-se, precisamente, à oportunidade de compensar esse investimento através da plataforma, pelo que há uma série de projetos que só fazem sentido assim. É algo a ter em conta e a celebrar.
E, tal como dizes, espero que isto que está a acontecer na indústria espanhola se possa aplicar aqui, em Portugal. Acredito que este país tem muitos recursos e, sobretudo, tem um mercado e criadores que estão na vanguarda da Europa e do mundo inteiro.
Partes da entrevista foram editadas para aumentar a clareza e concisão do texto.
Entrevista Realizada, Transcrita e Traduzida por Francisca Tinoco