Entrevista | João Gomes – Director e Programador do Festival Cinalfama

de Fio Condutor

Licenciado em Sociologia e Cinema, Mestre em Desenvolvimento de Projeto Cinematográfico, crítico de cinema e formador certificado em diversos tópicos de cinema, João Gomes é fundador do Cinalfama – Lisbon International Film Festival, uma referência cultural indie em Lisboa, evento que também dirige. O Fio Condutor teve a oportunidade de entrevistar o João Gomes no âmbito da 3ª edição do Cinalfama que decorre de 22 a 26 de julho, nas Escadinhas de São Miguel e no Museu do Fado, em Alfama.

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FIO CONDUTOR: Esta é a 3ª edição do Cinalfama, um festival internacional de cinema dedicado a apresentar filmes ao ar livre, especificamente situado em Alfama, um dos bairros históricos mais emblemáticos de Lisboa. Como se iniciou este projecto? Porquê este local e qual a sua importância?

JOÃO GOMES: Alfama está combalida entre uma nostalgia comunitária e um futuro desapossado e incerto. Nós acompanhamos desde 2009 este choque, esta transformação brutal da sua textura. O Cinalfama é um projeto de resistência. O nosso compromisso com o bairro vem daí. Projetos como a recolha filmada de histórias e oralidades de Alfama são sinais desse elo.

FC: Sessões ao ar livre sempre foram incrivelmente populares para o público geral, seja no formato de um Drive-In, num Roof Top ou simplesmente projectado nas paredes das ruas. Qual o apelo principal deste tipo de experiência para a audiência?

JG: Não consigo responder de forma genérica. Em Alfama as projeções ao ar livre são o único momento do ano em que lisboetas e estrangeiros se sentam e partilham algo de real. Nesses momentos tentamos também recriar uma intimidade e informalidade que ainda é o espírito do bairro.

FC: Como têm sentido a recepção dos moradores e moradoras do bairro a este projeto, e qual a evolução do público desde a 1ª edição do festival?

JG: Alguns dos moradores mais antigos gostavam que mostrássemos filmes mais leves e alegres. Outros gostam muito do ambiente espontâneo que o cinema nas escadarias de Alfama proporciona. Tem evoluído muito bem essa adesão.

FC: Como director e programador do festival, como funciona resumidamente o processo de seleção de filmes e organização do festival?

JG: Procuramos dar espaço a quem habitualmente não o tem. Territórios de ninguém como a média-metragem, filmes sem orçamento em que apenas conta a força da ideia, lugar reservado para filmes de estreia. Tentamos arduamente descobrir pepitas, vozes que precisem de carinho e atenção.

FC: Além de exibições de filmes, o Cinalfama conta com mais surpresas e eventos, incluindo debates. Quais são os principais destaques desta edição do festival?

JG: Temos o importante debate sobre a situação dos ciganos e das minorias étnicas com a realizadora do filme Judgment in Hungary e o ativista Rogério Roque Amaro. A este propósito lançaremos também um open call sobre o tema do diálogo intercultural e falaremos com a realizadora Renata Sancho sobre o seu filme Avenida Almirante Reis em 3 Andamentos.

FC: O cinema português continua a crescer em termos de quantidade. Sendo o Cinalfama um festival que procura homenagear o próprio espaço onde são exibidos os filmes, como procuram destacar o cinema nacional?

JG: Olhamos para Alfama através da lente do cinema. Os primeiros fragmentos da recolha filmada de oralidades serão o primeiro passo de um caminho que se quer profícuo para densificar a própria ideia de Alfama. Vários realizadores portugueses mas também estrangeiros serão no futuro chamados a dar o seu contributo. O cinema português com um propósito comunitário é o maior destaque que lhe poderíamos dar.

FC: O filme escolhido para a Sessão de Abertura desta 3ª edição, Judgement in Hungary (2013), marcou também a abertura da 1ª edição do festival. Porquê esta decisão? Sendo um filme que explora os crimes de ódio contra a comunidade cigana, sentem que os temas permanecem necessários de apontar e experienciar?

JG: Regressar ao Judgment in Hungary é revisitar um testemunho cinematográfico intensivo de um julgamento de crime de ódio racial na Hungria. Há oito anos discutimos com a realizadora se o cenário de racismo institucional e parlamentar seria possível no futuro português. Oito anos depois tentaremos responder a essa pergunta.

FC: Nova Iorque é principalmente famosa mundialmente através da arte audiovisual, sentimos que conhecemos a cidade sem nunca a termos visitado. O Cinalfama procura também prestar respeito ao próprio espaço de Alfama e à importância da localização e das suas gentes. Para uma audiência que desconhece este importante elemento cultural, qual a relevância de captar a essência e identidade do bairro e como é que isso se irá reflectir com o novo projeto-piloto do festival: Recolhas Filmadas de Histórias e Oralidades de Alfama?

JG: Nós não somos antropólogos nem temos a pretensão de veicular realidades definitivas. Queremos que cada realizador convocado vá construindo o seu olhar, afinando a sua lente em relação a Alfama. Queremos perceber o que desapareceu e o que resta. A ideia é mergulhar, registar e reconstruir o património imaterial de Alfama.

FC: O Cinalfama tem a clara missão de celebrar o cinema independente, mas também contribuir para a dinamização sociocultural do bairro, promovendo o debate e a criação de um espírito cinéfilo comunitário. Como pode o cinema educar o público?

JG: Contrariando clichés pitorescos e postaleiros, mergulhando a fundo no ambiente emocional de Alfama. Essa aversão às frases feitas e às narrativas simplistas é a mais poderosa pedagogia que podemos transmitir.

FC: Olhando para o passado, qual foi o momento mais marcante das últimas duas edições do festival que sentem que vai permanecer convosco para sempre?

JG: Um filme chamado Voev. Conhecemos na duração do filme a evolução íntima de um cantor búlgaro underground que subvertia corajosamente o totalitarismo socialista nos anos ’80. Um brutal testemunho e uma viagem por territórios poucas vezes vistos. Sentiu-se claramente nos espetadores o quão marcante foram o filme e a noite.

FC: E quais os maiores desafios/dificuldades que sentem ao organizar um festival com estas características?

JG: Legitimar um festival fora da caixa como o Cinalfama é uma tarefa feita de passos duros mas sólidos. Semeamos para mais tarde colher.

FC: Para concluir esta entrevista, quais são os objectivos para o futuro do Cinalfama?

JG: Que continuemos a descobrir novas vozes e formas de ver, que as condições que oferecemos aos nossos filmes selecionados e vencedores não parem de melhorar e que nos nossos projetos comunitários entrem em velocidade cruzeiro para que o tão acarinhado “património Cinalfama” não pare de crescer.


Mais informações sobre o festival em: www.cinalfama.com

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Entrevista por João Iria e Sara Ló

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