Depois da estreia na secção Orizzonti no Festival de Veneza de 2022 e uma passagem pelo LEFFEST no passado mês de Novembro, A Noiva (2022), o novo filme de Sérgio Tréfaut, chegou finalmente às salas portuguesas no dia 12 de Janeiro. O filme segue uma noiva do Daesh, Umm, que depois de ver o seu marido executado pelas forças iraquianas, vive na prisão à espera de julgamento com os seus dois filhos e outro que carrega no ventre. Umm é interpretada por Joana Bernardo e tivemos a oportunidade de entrevistar a actriz sobre o seu primeiro trabalho em cinema, sobre as filmagens no Curdistão Iraquiano e de que forma abordou uma personagem tão complexa como a que Tréfaut escreveu.
_
Fio Condutor: Fala-nos um pouco do teu percurso académico/profissional e o porquê da escolha de acting como carreira.
Joana Bernardo: Tudo começou pela dança, desde pequena que os meus pais me colocaram em várias aulas de dança: ballet, hip-hop, cheguei a experimentar a dança do ventre e quando percebi que existia o conservatório de dança nacional e que podia ter aulas de dança, a par com o ensino regular, era tudo o que eu queria, mas não fui a tempo. Venho de uma aldeia no Algarve, Paderne, e aos meus 10 anos a minha família mudou-se para “a capital”. Foi boa essa sensação de ter tudo ao alcance. Acabei por ir parar a uma escola de musicais, aí tive contacto com o teatro pela primeira vez. Quando chegou a altura de escolher, no 9º ano, decidi fazer provas para a Escola Profissional de Teatro de Cascais e entrei. Daí prossegui com os estudos para a Escola Superior de Teatro e Cinema e tive a oportunidade de trabalhar enquanto estudava, no Teatro Experimental de Cascais. Foi uma ótima forma de começar a colocar em prática aquilo que aprendia.
Em 2022 estagiei no Teatro Nacional D.Maria II, integrei o espetáculo do Pedro Gil, O Inesquecível Professor, com o António Fonseca como professor e os alunos, os meus colegas “inesquecíveis”. A Noiva foi o meu primeiro trabalho em cinema. Acho que foi um caminho que se foi encadeando de uma forma orgânica e sortuda, pelo menos até agora.
FC: Relativamente ao filme A Noiva, como é que este projecto chegou até ti e como foi o processo de casting?
JB: A Noiva chegou até mim através de amigos, que partilharam a publicação do anúncio do casting. Como um dos requisitos era falar fluentemente francês, inicialmente não pensei em candidatar-me. Entretanto houve uma amiga minha, a Carolina Villaverde Rosado, com quem me cruzei dois anos antes no TNDMII, no projecto para jovens – KCENA, ligou-me a falar deste casting e convenceu-me a enviar os meus materiais ao Sérgio. Houve um processo de pré-seleção e uns dias mais tarde a Tati Pasquali, que estava a ajudar o Sérgio na procura da actriz e na produção, ligou-me a dizer que tinha sido selecionada para o casting e que a rodagem seria no Curdistão Iraquiano. Para além do entusiasmo com os materiais que me tinham enviado, a ideia de filmar no Iraque era de sonho. No casting tive de interpretar a cena da execução e o diálogo final com o pai, saí de lá a pensar que tinha arruinado uma grande oportunidade! No final desse dia recebi uma chamada do Sérgio a pedir-me para voltar com duas músicas da Edith Piaf e lá voltei, cantei e percebi que não era uma segunda fase e que tinha sido escolhida, recordo-me que o Sérgio na altura disse, que estávamos num noivado.
FC: Quais foram as tuas primeiras impressões, quando leste pela primeira vez o guião?
JB: Fiquei muito impressionada com a maneira como o Sérgio escreveu o guião, desde o primeiro diálogo que tinha lido para o casting. Depois quando o Sérgio me deu o guião para ler, achei que o caminho desta mulher estava muito bem escrito, um caminho silencioso, doloroso, de uma grande sensibilidade. Achei fascinante e o desafio ainda maior, trabalhar noutras línguas e aquilo que não era dito estar presente através dos silêncios. Os diálogos eram duros e concretos, eficazes, menos é mais.
FC: Quais as principais dificuldades em filmar no Curdistão, tão longe de casa e com um ambiente cultural tão diferente? E como foi a recepção da equipa pelos locais?
JB: Começando pela recepção da equipa pelos locais, foi uma recepção muito positiva, muito acarinhada. Há um mês voltei ao Curdistão Iraquiano e lá senti que reencontrei um grupo de amigos que fiz na rodagem do filme. Voltei porque eles nos convidaram a voltar, no contexto do festival internacional de cinema de DUHOK, mas também pelos laços que criámos. Eles estão lá de braços abertos para nos receber, acho que há um grande preconceito da nossa parte, europeus, em relação ao lugar ser perigoso e se calhar impensável de pisar e é totalmente legítimo. Tem uma história pesada, difícil, triste mas é um lugar com uma cultura muito bonita e que nos ensina uma forma de nos relacionarmos uns com os outros de uma humanidade, beleza e concretude que não vejo regularmente.
Acho que posso passar para a resposta das maiores dificuldades, pegando no que acabei de dizer. Estar longe de casa e tendo sido o choque cultural que foi, Mosul e as histórias das pessoas, foi difícil, mas fez parte do trabalho e de uma aprendizagem pessoal. A barreira linguística foi uma dificuldade, talvez a dificuldade comum reconhecida pela equipa portuguesa, mas houve abertura para entendimento das duas partes, houve vontade de estabelecer relações, de fazer funcionar e tudo isso facilitou.
FC: Como foi a experiência de trabalhar com o restante elenco? Principalmente com as mulheres e as crianças que acompanham a viagem da tua personagem e tendo em conta toda a imprevisibilidade que isso acarretou.
JB: Foi um privilégio, a melhor parte de toda esta aventura foram as pessoas e tive muita sorte nas que se cruzaram comigo, locais, portugueses. A certa altura, para criar uma relação com o Basil e com o Hasan, “os meus dois bebés”, decidi ir passar uns dias ao campo de refugiados para integrar o dia-a-dia deles, dar-lhes banho, de comer, adormecê-los. Lembro-me da porta da casa em que estava no campo estar aberta e de as mulheres irem aparecendo, íamos comunicando por gestos, com muitas gargalhadas e de repente dessa convivência começou a minha relação com elas, familiar. Estávamos juntas quase todos os dias, foi muito bom aprender enquanto as observava diariamente. A imprevisibilidade foi o que manteve o jogo sempre vivo, foi bom, surpreendi-me muitas vezes, é a parte de que mais gosto neste trabalho.
FC: Como foi trabalhar com o realizador Sérgio Tréfaut e restante equipa técnica?
JB: Fui muito bem acompanhada nesta aventura, trabalhei com uma equipa que me apoiou muito, que me fez querer fazer melhor. Foi um privilégio conhecer e trabalhar com o Sérgio e com o resto da equipa, é uma aprendizagem que levo para a vida. Trabalhar com o Sérgio, foi um trabalho exigente, de grande minúcia, comunicação e de um grande entendimento, que conseguimos. Vou estar para sempre grata pelo voto de confiança e pela oportunidade, e é uma pessoa que admiro muito e que levo para a vida. Aliás, hoje, a amizade que fiz com eles, é uma amizade que prezo muito e que levarei para a vida.
FC: Para um primeiro papel no cinema, a Umm/Bárbara não pode ter sido tarefa fácil. É-nos apresentada como uma personagem ambígua, que acompanhamos ao longo do filme sem nunca termos certezas das suas motivações. Quando interpretaste a personagem, quem era, para ti, a Umm?
JB: Para mim a Umm, a Bárbara, era e é uma mulher que procurava algo, que sentia falta de alguma coisa, apaixonou-se e o amor foi mais uma das motivações que a levaram a juntar-se ao Daesh. A mãe do Mohammed, a partir do momento em que se juntou ao Daesh, viu e experienciou uma realidade completamente distante e talvez inimaginável para mim. Li algures que a descreveram como sem passado e sem futuro e era o que sentia enquanto a desenhava e pensava. É uma mulher que chegou a um não-lugar, cresceu e viu coisas que jamais irei entender e o sítio a que chegou só pode ser um sítio de pós, de vertigem, de perigo.
Como é que se salva a própria pele num quase ponto sem retorno? Como é que se é viúva pela segunda vez? Como é que se vê um amor morrer, se é obrigada a casar com um estranho, a relacionar-se e a procriar para apoiar uma causa que reprime a mulher, quando já se tem dois filhos?
Com que “estômago” se vê uma execução? Em que lugar é que ela se encontra para decidir algo assim? Como é que se encaixa um possível passado depois de se atravessar este universo?
Para mim, a Umm, a Bárbara, é habitada por todas estas questões, são precisamente estas questões que lhe dão dimensão – vivida num estado de dormência, de reflexão, em silêncio.
FC: A tua personagem comunica em 3 línguas diferentes: português, francês e árabe. Como foi este processo de trabalho com os/as coaches?
JB: O processo de trabalho partiu das línguas, do francês e do árabe ainda em Portugal, um mês antes de partir para o Iraque. Tinha vários encontros por semana, com as pessoas que o Sérgio escolheu para me ajudarem. A Ana Isabel Strindberg, a Professora Lúcia Lemos e o Pierre Primetens ajudaram-me com o francês: cantei canções infantis em francês, trabalhei o Les Maine Négatives da Duras, vi filmes, tive aulas de voz, pensámos na colocação da voz desta mulher, diferente em cada língua… No Árabe tive ajuda do Sr. Ashraf e do Hadi e cada um deles ajudou-me a pensar na construção desta mulher para além da língua, nos gestos, no olhar, no lugar em que este tipo de mulheres se encontram e na maneira como se comportam, foi essencial. Quando cheguei ao Curdistão conheci a Kawthar, a minha coach de árabe lá, que me acompanhou o tempo todo, ficámos amigas. E as pessoas que me ajudaram em Portugal continuaram a apoiar-me enquanto estive lá, nem que fosse apenas para saber como estava a correr. Cada um deles, durante a nossa pesquisa da língua, introduziu questões importantes que ajudaram a criar esta mulher.
Ia para a drogaria do Sr. Ashraf e colocavámos máscaras a tapar a testa, o nariz e a boca para trabalhar a expressão do olhar, a intenção dos gestos. Para além da ajuda dos elementos da equipa de filmagem a Dilpak e o Arizona, que me ajudaram a decorar umas rezas pedidas pelo Sérgio.
FC: Além da questão linguística, que outro tipo de preparação existiu para interpretares esta personagem?
JB: Para além da preparação linguística, fiz um trabalho de investigação, comecei pelo contexto histórico, depois recolhi o máximo de informação à cerca da Ângela Barreto e das outras duas mulheres que o Sérgio me deu como referência, procurei sobre elas, sobre outras mulheres, sobre os pais, notícias, entrevistas, vi filmes. Depois comecei a pensar na Umm, desenhei-a a partir daquilo que tinha sido escrito pelo Sérgio, fazendo uma junção de toda a informação que tinha recolhido, para construir o tal passado, as motivações. Pensei-a desta forma: de onde veio? Para onde vai? Quais são os objectivos? Obstáculos? O que dizem da Umm? O que digo de mim, Umm? E da Bárbara? Fiz um levantamento de questões e a maior parte delas não tiveram resposta, outras tantas encontrei na execução das cenas, que preparava em casa antes de filmar.
FC: Devido ao uso do Niqab, muito da tua performance está nos olhos e nas expressões faciais. Quais foram os maiores desafios para conseguires transmitir o que querias com tão pouco uso de linguagem verbal ou postura corporal?
JB: O maior desafio foi executar, tendo de encontrar um meio-termo entre a linha que o Sérgio pretendia e um corpo oprimido e um olhar em destaque. Mesmo assim e apesar de estar escondido por baixo de uma veste, o corpo continuava a comunicar, não me podia esquecer que esta mulher estava grávida de seis meses, mãe de duas crianças, a habitar um campo de prisioneiros. Tudo isso eram factores que alteravam a maneira como o corpo estava na história. O pouco uso da linguagem verbal levou-me a ter de trabalhar o estar, um estar nas circunstâncias em que se encontrava aquela mulher, foi prazerosa essa descoberta.
FC: Muitos actores/actrizes têm por vezes dificuldade em desligar-se dos seus papéis, mesmo após as gravações estarem concluídas. Neste caso, A Noiva tem uma carga emocional intensa e tu interpretas uma personagem que está a passar por um evento absolutamente devastador. Ficou alguma coisa de Umm contigo, que até agora não tenhas conseguido deixar de lado?
JB: É uma questão curiosa. Acho que sempre fui muito céptica em relação ao “sair da personagem”. Durante os processos criativos que tive na escola e fora, nunca tive um confronto com esta questão, para mim não era uma questão, significava se calhar chegar a um ponto de concentração tal, talvez uma transcendência…
Mas é curioso porque nunca ninguém me perguntou como foi o voltar a casa. Foram dois meses e meio de uma intensidade a trabalhar e mergulhada numa cultura distante, numa realidade através desta personagem, que foi descrita por um dos meus colegas de equipa, o João Ribeiro, o director de fotografia, um amigo muito especial, um profissional com uma sensibilidade e com um olhar sobre a vida, acima da média, atento aos outros… foi um dos grandes apoios que tive ao longo da rodagem, que me disse em resposta a uma mensagem que lhe havia enviado, “… é a sensação de como seres atirada de um comboio em movimento.”
Voltando à Umm… Foi um desafio gigante a aproximação a esta mulher. Acabei por conviver com ela todos os dias, mesmo quando tinha folgas… Acabamos por estar sempre a bulir. E essa convivência foi crescendo de dia para dia, pelo tempo que passava a filmar, com a veste, pelo tempo que passava com os bebés fora do tempo da rodagem, em casa, ao final do dia. Durante muito tempo, diria, que muita da frieza e da apatia desta mulher me acompanharam, até uma certa forma de estar defensiva. Foi um processo difícil, o regresso a casa, não porque tenha ficado “presa” em alguma espécie de lugar “chalala” por causa da personagem – acho que continuo a ser um bocadinho céptica em relação a isso – mas por ter “interrompido” a minha vida durante dois meses e meio, a trabalhar numa bolha, para contar uma história muito difícil. Ao mesmo tempo é esse o meu trabalho e é fascinante, aliás, foi para mim, um privilégio ter tido a experiência de estar sempre no contexto de trabalho e para além disso, no Iraque. Não haver o regresso a casa ao final do dia, ver a família, estar com amigos. As equipas Portuguesa e Curda transformaram-se na minha família e amigos, e no final foi muito difícil despedir-me. Terá sido um evento único, o encontro com todas aquelas pessoas, naquele lugar.
FC: Qual foi a maior aprendizagem que retiraste deste trabalho?
JB: O respeito por outra cultura, a humanidade pela maneira como as pessoas se relacionam, pela forma como fomos acolhidos, como nos ensinaram sobre a partilha, sobre a passagem do tempo. Acho que a maior aprendizagem foi tudo o que vi e apreendi desta cultura, tudo dado pelas pessoas e pela convivência com elas, o escutar das suas histórias, da forma de estar e de ver a vida…
FC: Que momento das filmagens ou da produção permanece actualmente contigo, que te marcou de alguma forma e que queiras destacar?
JB: Mosul? O campo? As mulheres? As pessoas, a equipa? Acho que a experiência em si, esteve repleta de momentos que permanecem comigo até hoje, não consigo destacar apenas um, destaco o todo.
FC: A Noiva já esteve presente no Festival Internacional de Cinema de Veneza, no Festival de Cinema Europeu de Sevilha e mais recentemente no Iraque e no Leffest. Como percepcionas a recepção do público até agora?
JB: Tem sido uma receção semelhante em todos os festivais, à excepção do Iraque, que foi o festival em que o filme foi mais controverso, pelo estranhar da linguagem e pela temática. Acho que no geral, se calhar, as pessoas estavam à espera de respostas, de um grande drama e sofrimento reflectidos na Umm, de algo mais, que não foi a linha desenvolvida no filme. No Iraque, houve quem dissesse que estávamos do lado do Daesh, ao “defendermos” a perspectiva desta mulher. A reação da equipa com quem filmámos no Curdistão foi positiva, acho que ficaram contentes por ver o resultado final. Houve quem questionasse o porquê do filme acompanhar o percurso da jovem, já depois de ter sido colocada no campo de prisioneiros, porquê não mostrar o durante? Como é que nos atrevíamos a contar a história daquela perspectiva?
Não é um filme sobre o Daesh, é um filme sobre um ângulo de uma história que acontece naquele lugar, não temos respostas, não julgamos, apenas damos a conhecer uma realidade.
FC: Quais são os teus próximos projectos, tanto no teatro como no cinema, que nos possas revelar?
JB: Estou neste momento em ensaios do espetáculo Misantropo do Hugo Vanderding e do Martim Sousa Tavares, encenado pela Mónica Garnel, integrado na odisseia nacional do TNDMII, com estreia no dia 3 de Março no Olga Cadaval em Sintra e digressão pelo país!
_
Entrevista por João Iria, Rafael Félix e Sara Ló