Entrevista | Fábio Powers – Realizador de “O Velho e a Espada”

de Fio Condutor

Depois de um percurso por mais de uma centena de festivais internacionais e de uma recepção entusiástica por parte do público, O Velho e a Espada, de Fábio Powers, chega finalmente às salas de cinema portuguesas a 23 de outubro de 2025. Situado algures entre o épico e o absurdo, o filme acompanha António da Luz – o “bêbado da aldeia” – que, ao encontrar uma espada amaldiçoada (voz de João Loy), é arrastado para uma jornada onde o heroísmo e a loucura se confundem.

Com ecos de Sam Raimi, Peter Jackson e até Kurosawa, mas também com um humor muito português e um olhar terno sobre o envelhecer, O Velho e a Espada afirma-se como um dos filmes mais singulares e corajosos do cinema nacional recente. Entre o artesanal e o mítico, o realizador Fábio Powers constrói um universo que desafia géneros, celebra o espírito comunitário e reivindica o prazer de contar histórias maiores do que a vida.

Falámos com o realizador sobre o nascimento do filme, o poder do cinema de género e o que acontece quando uma aldeia inteira entra num épico sobrenatural de espada em punho.

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Fio Condutor: Antes de falarmos do filme, quem é o Fábio Powers? Como começou o teu percurso e o que te move enquanto cineasta?

Fábio Powers: Alguém que gosta de contar as histórias que surgem na sua cabeça, e o que me move é exatamente poder contá-las. É um processo que considero mágico: ver materializar-se numa câmara o que antes só existia no plano das ideias. Tudo começou quando o meu pai me deu uma câmara ainda miúdo, e desde então nunca mais a larguei.

FC: Como nasceu O Velho e a Espada? Houve um momento específico que despoletou a ideia, ou foi algo que foste maturando ao longo do tempo?

FP: Era uma ideia que já tinha desde a adolescência e que queria concretizar com o António, porque ele era extremamente engraçado e tínhamos a promessa de um dia o fazer. Por um motivo ou outro, foi sendo adiada até que o meu amigo Cristiano Guerreiro, que conheci no curso de cinema, me incentivou a avançar, porque acreditava no potencial do projeto.

FC: O filme tem raízes profundas no cinema de género B. Lembras-te de qual foi o primeiro filme que te fez apaixonar por esse tipo de cinema, aquele que te fez pensar: “eu quero fazer isto”?

FP: O filme é um conjunto de influências desde a infância até à idade adulta. Começa muito cedo na televisão com Power RangersKamen RiderDragon Ball… no cinema propriamente dito, lembro-me dos Evil Dead do Sam Raimi e dos primeiros filmes do Peter Jackson, como o Bad Taste e o Braindead. Fora do género, admiro também a resiliência e a capacidade de fazer bons filmes com orçamento reduzido de cineastas como o Kevin Smith e o Robert Rodriguez.

FC: O que achas que continua a seduzir a audiência neste tipo de cinema?

FP: São filmes que arriscam e não têm medo de experimentar, tanto na narrativa como na parte técnica. Raramente seguem as fórmulas hollywoodescas às quais estamos habituados, e penso que isso é algo aliciante para o público.

FC: Há uma coragem em assumir a “Série B” em Portugal, um país que tende a olhar o cinema com solenidade. Sentiste resistência, ou o público português está mais aberto a este tipo de irreverência?

FP: Existe sempre algum ceticismo, mas sinto que há cada vez mais público português aberto a estas propostas. As pessoas gostam de se deixar levar por histórias ousadas e sentir que o cinema pode ser divertido e provocador. Encaram o filme com alguma estranheza no início, o que é perfeitamente normal (muitos não sabem bem ao que vão), mas depois recebem-no com muito carinho. Divertem-se, e ao mesmo tempo ficam com coisas que os fazem refletir. É possível conciliar comédia com algo mais profundo; um filme pode (e deve) ter várias camadas. Não precisa de ser só comédia, nem só um filme de autor solene. A arte não tem limites: pode ser muitas coisas, e precisamos de todo o tipo de cinema.

FC: Fazer um filme em Portugal, sobretudo com esta ambição estética e de género, não deve ter sido fácil. Quais foram as maiores dificuldades, e talvez também as maiores surpresas, de concretizar um projeto como O Velho e a Espada no contexto do cinema português?

FP: As dificuldades foram muitas: recursos limitados, logística complicada e conseguir que todos acreditassem na loucura do projeto, mas é precisamente isso que torna o processo aliciante e onde se criam as melhores memórias! As surpresas também foram muitas: a dedicação da equipa, a paixão dos atores e a generosidade da aldeia onde filmámos tornaram possível algo que, à primeira vista, parecia meio impossível. O filme ainda estaria no meu computador em pós-produção, se não tivesse a ajuda do meu amigo Jules Spaniard, que perdeu muitas noites comigo a trabalhar nos efeitos visuais do filme. Foram mais de 500 planos com algum tipo de efeito!

FC: O filme é, de certa forma, um trabalho de comunhão com a aldeia e os seus habitantes. Como foi essa convivência? A aldeia adaptou-se à equipa, ou a equipa é que acabou por se moldar à aldeia?

FP: Foi um pouco dos dois. Muitas das pessoas já me conheciam, e eu a elas, porque visito a aldeia desde muito novo, por razões familiares.

FC: Os aldeões tinham consciência do tipo de filme que estavam a fazer, com demónios, espadas falantes e humor negro? Houve curiosidade, ceticismo ou até histórias locais que acabaram por inspirar a equipa?

FP: Tinham pois, até porque a Espada dá bastante nas vistas! Andámos mascarados com caveiras, de dia e de noite, o que provocou estranheza no início, mas depois foram muito calorosos. Houve dias em que nos ofereceram lanches durante as filmagens! Além disso, há na zona a tradição de cantar as Janeiras com músicas que evocam almas e o sobrenatural, e decidimos integrar esse momento no filme.

FC: O Velho e a Espada parece um filme que respira muito improviso e espontaneidade. Mantiveram-se fiéis ao guião, ou houve momentos em que o acaso falou mais alto?

FP: O guião servia de base, mas os atores, especialmente o António, adaptavam o que estava escrito para soar mais natural.

FC: Há alguma cena ou momento do filme que tenha nascido de um erro feliz? Algo que não estava planeado e acabou por se tornar essencial?

FP: O ator que faz de “Raul” não conseguiu estar presente no dia da morte da personagem. Tivemos de improvisar, usando um duplo de costas, e acabou por ficar ainda mais engraçado.

FC: Como foi a experiência de trabalhar com João Loy, uma voz icónica para várias gerações? Como surgiu esta parceria e como foi para ti dar vida a uma espada com a voz de Vegeta?

FP: Já somos amigos há alguns anos e a Espada foi escrita já a pensar na interpretação e carisma próprio dele. Foi absolutamente fantástico, como em qualquer projecto que fazemos, o João traz sempre muito boa disposição e tem muito rigor na sua arte. Acertou logo na onda da personagem e gravou praticamente tudo à primeira!

FC: No filme, António da Luz interpreta-se a si próprio. Como é dirigir alguém que, de certa forma, parece por si só uma personagem maior do que a vida?

FP: O António do filme não é exatamente o António da vida real, mas estão próximos. Foi fascinante vê-lo adaptar-se ao processo. Nas partes cómicas estávamos completamente seguros, mas nas dramáticas havia algum receio, e ele superou todas as expectativas, chegando a haver momentos em que nos arrepiava mesmo.

FC: O filme estreou com sala esgotada no Fantasia Festival e passou também pelo MOTELX, onde regressou este ano com a demo do jogo. Como tem sido essa recepção do público, tanto dos festivais internacionais como do público português?

FP: Tem sido incrível. O público tem sido entusiástico e participativo, tanto nas sessões como nas redes sociais. Estamos profundamente gratos por isso. Esperemos que assim continue com esta nova aventura nas salas comerciais, com a distribuição da Cinetoscópio, que abraçou este projecto e tem sido incansável na promoção do filme!

FC: O Velho e a Espada parece o início de um universo maior, actualmente a expandir-se através do jogo. Como nasceu essa vontade de levar este mundo para outras linguagens e quais as principais diferenças nos vários formatos audiovisuais?

FP: Além do filme, estamos a desenvolver o jogo, que oferece uma experiência interativa, e uma banda desenhada. As ideias surgiram naturalmente e foram reforçadas pela recepção positiva do público. O jogo surgiu em conversa com amigos que desenvolvem jogos, o Marco Santos e o André Santiago, da Ninestudios Games, que abraçaram este desafio e estão-se a esmerar para vos trazer uma experiência divertida! Quanto à BD, estou a escrever aos poucos e quem irá desenhar será o meu amigo Jules Spaniard (autor da BD Arcadian Devils), iremos fechar pontas soltas e explorar caminhos e ideias que no filme seriam impossíveis. Já existe um fanzine a circular que é uma espécie de teaser para o que aí vem!

FC: Olhando para o futuro, seja dentro ou fora deste universo, que projectos tens em mente? O que te apetece explorar a seguir, enquanto criador?

FP: Estou a desenvolver uma banda desenhada que conta a história de vida do meu avô Manuel, que era um acordeonista invisual com uma história de vida incrível que eu achei que tinha que ficar contada de alguma maneira. Como em filme seria difícil, uma vez que atravessa várias décadas, optei pelo caminho da BD e tem sido um processo muito enriquecedor também. Terá o seu lançamento em 2026!

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Entrevista por João Iria, Maurício Valentino Borges e Sara Ló

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