Entrevista | Directora Artística do Festival Punto y Raya: Noel Palazzo

de Fio Condutor

É proibido representar. Punto y Raya, o principal festival dedicado à imagem em movimento abstrata, chega pela primeira vez a Lisboa entre 11 a 15 de Outubro, apresentando mais de 100 filmes que obedecem a essa única regra. Numa parceria com a Taumatrópio – organizadora da MONSTRA | Festival de Animação de Lisboa –, a capital portuguesa torna-se o ponto de encontro para a arte audiovisual abstrata na Europa e no mundo, nesta oitava edição do Festival.

Perante esta ocasião, o Fio Condutor teve a oportunidade de entrevistar a co-directora artística do Punto y Raya, Noel Palazzo, uma artista com um interesse particular neste género de cinema único, para descobrir mais acerca deste Festival, a sua génese, a importância do abstrato no cinema e a programação desta oitava edição.

Além da seguinte transcrição (editada), a entrevista está também disponível em formato vídeo, através do nosso canal de Youtube, no fim desta página.

Fio Condutor: Para aqueles que desconhecem este Festival, o que é o Punto y Raya?

Noel Palazzo: Punto y Raya significa literalmente Ponto e Linha, os dois elementos básicos de sistemas de representação. O nosso Festival é dedicado a estes elementos e a outros associados à expressão; a expressão abstrata das artes visuais. Movimento, no nosso caso, pois trabalhamos com vídeos, instalações, animações, entre outros. Por isso, colocamos um foco nestas ideias de como expressar; como comunicar emoção; como construir uma narrativa e como construir mundos; como conectar emocionalmente e intelectualmente com pessoas através do uso puro da forma, cores, movimento e som. São pontos e linhas em movimento (Punto y Raya). Acaba por ser um título lúdico para algo um pouco mais complexo mas transmite a ideia do foco na forma pura; no gesto puro, e na ideia de transformar estes elementos puros em “mãos em si”, e não apenas como uma desculpa para construir ou comunicar outra coisa.

FC: Qual a génese deste Festival?

NP: Isso é uma pergunta muito interessante porque para ser sincera não sabemos exactamente como tudo aconteceu, foi um processo muito orgânico. Tudo começou em 2006, inicio de 2007, quando estávamos a supervisionar programas de exibições para várias instituições e questionámos se conseguíamos, possivelmente, fazer a curadoria de um programa completo de filmes abstratos para uma destas instituições. Depois percebemos: “Espera, talvez isto consiga crescer. Talvez tenhamos aqui algo interessante. Talvez possamos, simplesmente, enviar uma mensagem à comunidade artística e a criadores pelo mundo inteiro, através do website, da internet, e-mails, entre outros, (estamos a falar de 2007, por isso ainda existiam limites neste meio) e ver quem estaria interessado em participar num Festival que apenas trabalha com pontos e linhas; arte abstrata em movimento.” E, para a nossa surpresa, tivemos uma resposta muito interessante. Penso que recebemos cerca de 92 filmes, o que foi imenso; mais do que esperávamos. Talvez a parte mais interessante foi que compreendemos que estas obras eram todas muito diferentes umas das outras e foram criadas por pessoas muito diferentes e de cenários muito diferentes. Haviam, obviamente, criadores de animação e realizadores, mas também designers gráficos, arquitetos, músicos e até cientistas que trabalhavam com data e representação visual. Tivemos uma coleção muito diversa de pessoas e respostas ao nosso convite, então percebemos que, talvez, tínhamos algo digno de explorar a fundo com este Festival. A primeira edição nasceu como uma ideia, como um pensamento, e quando recebemos o feedback da audiência e dos artistas, a sugerir para continuarmos e expandirmos, foi quando tornou-se num verdadeiro festival, com esta noção de continuidade.

Punto y Raya 8ª Edição (Banner)

 

FC: Acho que existe uma divisão nas audiências em relação a arte abstrata, particularmente no cinema, no sentido em que audiências não procuram ativamente arte abstrata no cinema. Qual é a importância da arte abstrata no escopo cinemático?

NP: Sim, concordo contigo. Existe uma espécie de divisão. Não existem muitas pessoas particularmente interessadas em algo sem uma narrativa concreta ou sem actores ou actrizes famosas; sem diálogos ou conflitos emocionais e amor, todos estes aspectos. Acho que a divisão surge principalmente por haver uma falta geral de exposição a este tipo de trabalho artístico. Estamos habituados ao que a televisão nos alimenta, ou ao que o cinema mais próximo nos alimenta ou ao que a Netflix nos alimenta. E, habitualmente, não é este tipo de trabalho artístico. Mas tenho a certeza que à medida que alcançarmos uma maior audiência mundialmente, as pessoas vão começar a encarar este trabalho artístico de uma maneira mais familiar e a desenvolver uma sensibilidade perante este. Todos têm essa sensibilidade, absolutamente, mas nem todos tiveram, ainda, uma oportunidade para explorar essa sensibilidade. O nosso objectivo aqui é (e este é um dos motivos porque fazemos o Festival em países diferentes constantemente) tentar alcançar novas audiências gerais e tentar provar, de certa maneira, que falamos numa língua universal, que todos temos as ferramentas para falar esta língua e compreender, comunicar e apreciar o que está a acontecer. O único requisito é a tua presença, que permitas essa liberdade de exposição a esta arte. E acho que uma das razões para as pessoas sentirem medo, não sei se medo é a palavra certa, perante arte abstrata no geral, além da animação, é porque muitos questionam: “Qual é o seu significado? Não percebo.” Sentem que talvez não estão equipados para compreender a mensagem escondida que talvez exista nesse trabalho. Parte da nossa campanha, com o Punto y Raya, é contar às pessoas que não existe uma mensagem concreta; é por isso que o artista utiliza animação abstrata e arte abstrata. Não é acerca de uma comunicação específica concreta, é acerca da expressão, de conexão, de construir conexões que nos impactam num nível instintivo, ou que nos atingem o coração. Não necessariamente através de pensamento racional. A partir do momento que compreendes que o objetivo é: “Oh, ok, vou apenas ouvir. Vou apenas estar presente e receber o que me é entregue; ver se relaciono me com isso, se consigo vibrar com isso.” é quando te apaixonas por este trabalho artístico. Compreendes que é uma conexão muito intima com o criador responsável pela obra e por esse motivo é uma forma de arte muito poderosa.

FC: Isso abre a próxima pergunta. Porquê trazer o Festival a Portugal, agora?

NP: Existem muitas razões. Uma muito importante é a nossa parceria com os nossos amigos da Taumatrópio Lda., os criadores responsáveis pelo Monstra, o Festival Internacional de Animação em Lisboa. Através deles conseguimos produzir este evento em Lisboa. Um enorme agradecimento a esta equipa incrível, talentosa, prestativa e apaixonada pelo seu trabalho. Felizmente, temos eles na nossa equipa. Por isso, graças a eles, conseguimos fazer esta edição em Lisboa. Outro motivo é que Portugal está a tornar-se, aliás já é uma força poderosa atrás da animação artística e experimental, não apenas na Europa mas pelo mundo inteiro. Nestes últimos anos, graças a um maior apoio do governo e outras subvenções públicas, a animação experimental e artística continua a crescer e a ganhar o reconhecimento que merece, por isso existe um alcance muito interessante na comunidade de criadores em Portugal, particularmente em Lisboa. Todas as peças encaixaram. Era o lugar perfeito e o momento perfeito para fazer esta edição do Festival em Lisboa. Temos muita sorte e estamos felizes por estar aqui.

Panorama Português de Filmes Abstratos com Miguel Pires e Fernando Galrito

 

FC: Sei que é uma pergunta impossível de responder, mas quais são as atrações principais desta edição do Festival Punto y Raya?

NP: É uma boa pergunta. Não sei se consigo responder propriamente mas vamos ver. Existem diferentes secções (no Festival) então existe algo para todos. Se estás interessado em animação experimental no cinema, temos uma competição que inclui cerca de 104 filmes de 33 países, representando o melhor da arte abstrata do último ano, obviamente não é uma compilação do melhor pois temos um limite de tempo e de trabalhos que conseguimos aceitar. Infelizmente, nem todos os filmes conseguem ser incluídos no programa mas estas foram as melhores obras que conseguimos no tempo que tivemos. Esta competição vai decorrer durante as tardes de Quinta-Feira, Sexta-Feira e Sábado no Cinema Fernando Lopes. Também temos exibições com convidados; panoramas nacionais – neste caso, na sessão de abertura, obviamente sendo Portugal o nosso país anfitrião, damos as boas vindas à nossa audiência nacional e internacional com um panorama português na Cinemateca Portuguesa, com curadoria feita pela Monstra e introduzida pela Monstra, com muitos artistas presentes. Depois existem as performances ao vivo. É generativo, visual e musical, como um concerto audiovisual, podemos chamar-lhe isso, sempre a explorar a abstração através do som e dos visuais. Temos Tina Frank, Zero van den Brook, Ícaro Pintor (nesta secção). Temos programas educacionais pelas manhãs, com masterclasses que exploram o processo criativo de muitos dos artistas presentes na nossa formação principal, ilustrados com exibições dos seus trabalhos e filmagens das produções; trabalhos muito interessantes com sessões de Q&A. Existem algumas atividades para as famílias no fim-de-semana, como workshops juniores por Fernando Galrito e Radostina Neykova, que vão ensinar às crianças e as suas famílias alguns truques para abstraírem-se da realidade, no Museu de Lisboa, utilizando a sua coleção bela de azulejos e objectos. Existem também instalações de artes, para aqueles que querem vir sozinhos, num ambiente contemplativo, e querem sentar-se à frente de um trabalho lindo de emoção abstrata; temos trabalhos que vão ser exibidos na Cinemateca Portuguesa, outros na Universidade Lusófona, com obras muito diversas. Temos instalações de realidade virtual, por exemplo eu não tenho nenhum headset de Realidade Virtual, por isso esta será a primeira vez que consigo experienciar este trabalho como é suposto ser (risos), por isso se não tens um headset de Realidade Virtual, esta é a tua oportunidade de ver o trabalho de Julius Horsthuis. Existe também um panorama de estudantes; temos um programa inteiro com filmes feitos por estudantes, incluindo alguns da Universidade da Lusófona, um dos nossos locais de exibição nesta edição em Lisboa. Existe um pouco para todos os gostos. Espero.

FC: Da perspectiva de uma directora artística, como funciona o processo de seleção dos filmes, masterclasses e actividades? Qual é o processo de escolha atrás do Festival?

NP: Somos duas pessoas no departamento artístico, eu e a Ana Santos, a minha colega e co-fundadora do Festival. Somos, as duas, directoras artísticas, por isso devido crédito a Ana Santos. O processo é… Bem, como já trabalhamos juntas há 15 anos, sabemos como operar. Tentamos, sempre, trazer algo novo; algo que nos surpreenda, que nunca tenhamos visto nestes 15 anos do Festival Punto y Raya. Há sempre uma novidade, há sempre experiências novas e pessoas a quebrar barreiras; há sempre novas tecnologias a explorar, como a inteligência artificial neste caso – alguns filmes foram criados com inteligência artificial. De certa maneira, acredito que tentamos atingir diversidade. Acho que isso é muito importante, por isso um dos nossos critérios principais é tentar atribuir vozes ao grupo mais diversificado de artistas que conseguirmos, de países, culturas e cenários diferentes. Também existe o aspecto inovador, como a originalidade dos trabalhos ou a inovação criada com tecnologia antiquada. Nem tudo precisa de ser novo mas mesmo quando utilizamos caneta e papel conseguimos criar algo completamente novo. Por isso, estamos sempre à procura deste tipo de trabalhos. E também procuramos obras que podem não ser as melhores no escopo mas trazem, definitivamente, algo novo e conseguem inspirar a comunidade. Escolhemos esses trabalhos porque sentimos que são as obras certas para estar no Festival pois abrem um diálogo, por exemplo, algo que um filme perfeitamente perfeito pode não conseguir. Por isso, sim, acho que diversidade é um dos conceitos chaves no Festival. A relação entre imagem e som é, também, muito importante. Alguns realizadores esquecem-se, talvez, (deste aspecto) pois estão tão preocupados com a história ou a representação que esquecem-se que 50% do que vemos e ouvimos no audiovisual é som. Por isso é importante recordar as audiências e os criadores que o compositor é uma grande parte deste trabalho e a forma como esta interrelação entre os visuais e as imagens em movimento e o som trabalham em conjunto é um aspecto importante no processo de seleção.

FC: Nos últimos anos sucedeu um crescimento expansivo tecnológico. Qual é a importância da tecnologia na criação de artes abstratas, especificamente no cinema? Esta tecnologia complementa a arte abstrata?

NP: Acho que todas estas ferramentas são magnificas mas ao mesmo tempo são uma faca de dois gumes pois podem ser interpretadas erradamente como um substituto para a criatividade; as pessoas usam (estas ferramentas) e deixam o computador fazer todo o trabalho, apenas editando o que o computador gera, por vezes nem isso. O Computador é apenas uma ferramenta, da mesma maneira que um lápis e uma caneta são ferramentas. Acho que é importante compreender o papel do computador no processo criativo. Todos compreendem de formas diferentes, claro. Mas eu acredito, pessoalmente, que é importante encontrar o balanço certo entre o auto generativo e as escolhas criativas, de certa forma, escolhas criativas estéticas que o computador não está consciente e que nós, como humanos, conseguimos ver com uma perspectiva exterior. Por um lado, é excelente haver esta democratização do processo criativo, todos conseguem construir um filme rapidamente e facilmente, por vezes são apenas segundos através da inteligência artificial mas isso não quer dizer que valha apena. Não significa que compense que o faças. A tua história merece mesmo ser contada? É necessário questionar o que nós queremos contar através do nosso trabalho. Porque estamos a usar estas ferramenta em vez de outras? É uma situação muito complicada. Acho que as pessoas abusam sempre de ferramentas actuais. Quando o CG apareceu, todos abusavam desses efeitos e abusavam dos filtros e dos after effects. Todos abusam da nova tecnologia (risos) porque é novidade, está aqui para ser abusada. É fantástico mas existe o segundo passo. Porque estás a fazer isto? Qual o objectivo? Quem és tu? Qual a tua perspectiva aqui como artista com esta ferramenta que utilizas? Espero que consigamos ultrapassar esta loucura pela moda da inteligência artificial e tentar focar em como usá-la criativamente, invés de simplesmente produzir conteúdo independentemente das razões. Tenho a certeza que vamos fazer isso muito em breve, mais cedo do que tarde.

Recombination Realidade Virtual de Julius Horsthuis

 

FC: Regressando ao processo de criação do Festival. Após vários anos de trabalho, o que mudou no Festival? Qual foi o processo de crescimento?

NP: Muitas coisas mudaram. Para começar, à medida que mais pessoas tornaram-se conscientes do festival recebemos mais trabalhos, por isso a diversidade dos conteúdos aumentou. Se compararmos a edição de 2023 com a edição de 2007, reparamos imediatamente as diferenças na diversidade. A qualidade das obras; como recebemos mais trabalhos conseguimos aumentar a fasquia. Isto significa que a qualidade dos filmes aumenta com cada edição. O Festival também explora novos meios que não explorava quando nasceu. Mencionei as instalações, por exemplo, ou a realidade virtual. Não tínhamos a oportunidade de fazer isto em edições anteriores, pois começámos em 2014, penso eu. Por isso continuamos em desenvolvimento e a crescer neste meio. Tentamos pensar em aplicações de telemóvel e outras formas de tecnologias que devemos definitivamente mordiscar (futuramente) no festival, talvez abrir alguns convites para aplicações ou outros formatos de expressão. A comunidade continua a crescer. Nas primeiras edições, a nossa audiência eram os artistas e os seus casais. É engraçado porque quando fazíamos uma conversa com os artistas, a audiência inteira levantava-se e ia para o palco. (risos) Felizmente já não acontece. Existem audiências para esta (arte), além dos criadores e artistas. Isso é outro aspecto que alterou em edições recentes. Claro, ao criar novas parcerias com novos parceiros e diferentes países e ao manter o Festival em movimento, nós (eu e a Ana) também mudamos com cada edição porque continuamos a aprender imenso com estas pessoas, com os teus parceiros, aprendemos imenso com a cultura, com as cidades que visitamos, os lugares e os locais do Festival. É sempre uma experiência única, é sempre maravilhoso. Assustador, às vezes, mas maravilhoso. Tudo muda; tudo flui em cada edição. Por exemplo, neste momento não sabemos onde será a próxima edição. De certa maneira, estamos à deriva e a deixar a comunidade ou os profissionais e os professores que trabalham connosco no Festival fazerem sugestões: “Talvez possam vir ao nosso país. Talvez possamos fazer uma parceria.” É um processo muito orgânico e continua a ser desenvolvido organicamente. É um processo que aprecio bastante.

FC: Para concluir esta entrevista, quais as futuras ambições do Festival?

NP: (risos) Oh, Céus. Já é tão ambicioso que não sei o que posso esperar para o Festival. Precisamos, sem dúvida, de encontrar um local apropriado para alcançar uma audiência mais convencional. Se eu for verdadeiramente ambiciosa, tentaria pensar numa maneira de integrar o Festival Punto y Raya em eventos convencionais ou plataformas de streaming ou festivais, instituições. Mas, não sei, acho que actualmente o festival está a crescer ao ritmo que tem de crescer e estamos bastante contentes com o estado das coisas, neste momento.

FC: Como mencionou, a parte incrível do Festival é o seu crescimento orgânico, estão a ir para onde são levados, o que acaba por resumir, de forma geral, a arte abstrata.

NP: Exactamente. Nunca tinha pensado nisso, mas sim, tens absolutamente razão. De certa forma, é um processo. A partir do momento em que percebemos que: “Este é o propósito. Tenho de parar. É isto.”, percebemos que atingimos o fim. Nós estamos muito longe desse ponto. Não sei onde o Festival nos leva, vamos simplesmente trabalhando e adoro que tantas mãos novas e frescas estão a colaborar nesta tapeçaria coletiva que é o Festival Punto y Raya, e o que está constantemente a tornar-se. Adoro.

O Festival Punto y Raya decorre de 11 a 15 de Outubro em diversos locais, como a Sala de Cinema Fernando Lopes (Campo Grande), a Cinemateca Portuguesa, o Museu de Lisboa, a Universidade Lusófona, a Faculdade de Belas Artes de Lisboa e a Escola Superior de Música de Lisboa. Para mais informações, consultar puntoyrayafestival.com

Esta entrevista foi realizada, transcrita e traduzida por João Iria.

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