Depois de Lisboa e Braga, o Festival Política vai chegar a Loulé entre os dias 22 e 24 de Setembro onde pretende, através de debates, performances, concertos, oficinas para adultos e crianças, exposições e a exibição de diversos filmes, promover a participação cívica e a defesa dos direitos humanos.
O tema desta edição será a Desinformação que será o mote de diversos workshops e discussões com contribuições que vão desde o Fumaça à ERC. No que toca ao cinema, entre vários títulos importantes e relevantes a todo o panorama político nacional e internacional, destacam-se Quo Vadis Aida? (2020), o filme bósnio sobre o genocídio perpetuado pelo exército sérvio na Guerra da Bósnia, e Alcindo (2021), documentário de Miguel Dores sobre o assassinato de Alcindo Monteiro às mãos de skinheads no dia 10 de Junho de 1995 em plena noite lisboeta.
O Fio Condutor teve a oportunidade de falar com os diretores artísticos do festival sobre a impacto que o cinema pode ter na vida política, as adversidades por trás da organização de um festival de cinema político e o futuro que espera ao maior evento dedicado aos direitos humanos e participação cívica de entrada gratuita, em território Luso.
_
Fio Condutor: O Festival Política iniciou-se em 2017 na Capital. Ao longo dos anos, e até aos dias de hoje, já foi também realizado em outras cidades do nosso país como Braga e Évora. Agora há uma nova edição em Loulé. Porquê a escolha da cidade de Loulé e qual a importância de realizar o festival em diferentes zonas do país?
Rui Oliveira Marques: Desde o arranque do festival, que a intenção era levar o projeto a diferentes geografias, públicos e realidades. Neste caso, fomos convidados pela Câmara de Loulé e pelo Cineteatro Louletano para realizar a primeira edição no Algarve que, na verdade, será bem ambiciosa. Pela primeira vez teremos o festival a decorrer em vários pontos de uma cidade. Além da principal sala de espetáculos de Loulé estaremos também no Palácio Gama Lobo, Solar da Música Nova, Banhos Islâmicos e ainda na Escola Secundária, com atividades dirigidas à comunidade escolar.
FC: Já há planos para abranger mais localidades, que nos possam revelar?
ROM: Temos tido abordagens de outras localidades que têm interesse em levar às suas comunidades as discussões e a programação que o Política propõe. No entanto, só poderemos divulgar as novidades no início de 2023.
FC: Como descrevem a evolução do festival ao longo das suas edições?
ROM: O festival começou no Cinema São Jorge, em Lisboa, ocupando apenas a sala estúdio e a sala de cinema mais pequena. No ano seguinte passamos a ocupar também a Sala Manoel de Oliveira, com mais de 800 lugares. Em todo este processo foi determinante a confiança da EGEAC, que passou a integrar o festival nas comemorações Abril em Lisboa, associadas ao 25 de Abril. Em 2019, além de Lisboa, chegamos a Braga e Évora. Como em todos os eventos e festivais dirigidos ao grande público, estivemos depois dois anos condicionados pela pandemia. Tivemos de cancelar, adiar e reprogramar várias vezes. Por exemplo, também não pudemos realizar atividades com as escolas. Em 2022, voltamos ao formato normal, em Lisboa, Braga e, agora, Loulé, com atividades a decorrer em simultâneo e com o público a poder circular pelos espaços e a confraternizar sem constrangimentos. Talvez a grande transformação ao longo deste anos tenha sido a da complexidade da programação. Em cada cidade temos entre 15 a 20 atividades, de diferentes disciplinas artísticas e diferentes modelos de interação com o público. Além de artistas e personalidades já cimentadas a nível nacional, contamos, cada vez mais, com intervenientes, artistas e criadores de cada cidade ou região que nos acolhe e que trazem as suas propostas e inquietações para os nossos palcos. Estamos a falar de dezenas e dezenas de pessoas que, em cada cidade, dão o seu contributo para as discussões relacionadas com a cidadania, direitos humanos e participação cívica.
FC: O Festival Política apresenta-se como o maior evento dedicado aos direitos humanos e participação cívica, de entrada gratuita, que decorre em Portugal. Quais são as maiores dificuldades/adversidades que sentem na organização de um festival deste género?
ROM: Sendo um festival de acesso gratuito e sem receita de bilheteira, a principal questão é precisamente a do financiamento. É nesse sentido que contamos com o apoio de vários parceiros institucionais que, anos após ano, renovam a confiança no projeto.
FC: No meio das diferentes apresentações que decorrem durante o festival, o cinema tem claramente um lugar de destaque. De que forma é que o festival pretende impactar a forma como o público pensa a política, através da exibição dos filmes que integram a programação do festival?
ROM: Uma história bem contada, seja ficção ou documentário, é uma ferramenta poderosa para gerar inquietação e desconforto. Ajuda ainda a provocar a discussão e debate. É ainda uma porta aberta para o mundo. Por exemplo, em Loulé, o cinema vai levar-nos à guerra da Jugoslávia e ao falhanço das organizações internacionais, mas também às desigualdade raciais em Portugal e às memórias dos casos de assassinato de Alcindo Monteiro e de Gisberta Salce.
FC: Em linhas gerais, o que procuram num filme para a sua integração no festival?
ROM: Que seja um filme que inquiete e que dê visibilidade a um tema relacionado com os direitos humanos e cidadania que seja pouco conhecido ou documentado. Para efeitos de programação, colocamos ao mesmo nível um filme que seja o resultado de um trabalho desenvolvido em meio académico ou obra de uma equipa profissional e com um orçamento grande. A mensagem prevalece sobre a forma.
FC: Uma mentalidade que o cinema não pode ser político tem crescido ultimamente, juntamente com interpretações erradas de celebradas sátiras políticas. Na vossa perspectiva, como é que o cinema pode entregar a verdade para uma audiência que apenas quer ver, ou apenas vai ver/consumir, aquilo em que já acredita?
Bárbara Rosa: Nós assumimos que a política reside nas relações pessoais, com a comunidade, com as instituições e o meio ambiente, portanto facilmente identificamos o cariz político de um filme documental, ainda que ele não tenha essa motivação. No Festival Política assiste-se, sobretudo, a cinema documental e este tipo de realização não se limita a pretender provocar uma reacção, intenta fornecer impulsos para realinhar o pensamento e aprofundar perspectivas. Este processo de reforço da empatia incita inevitavelmente à acção, portanto acreditamos que a nossa audiência, ainda que já alinhada com os valores defendidos pelo festival, sai de lá potenciada no seu papel de agente de transformação em casa (um dos palcos da desigualdade), na escola, no trabalho e na rua, no fundo, na sua condição de cidadã/o consciente da fragilidade dos valores da Democracia.
FC: Sendo a “Desinformação” o tema central deste ano e tendo em conta que o cinema parte tanto de narrativas pessoais como de estúdios multimilionários, como saber distinguir um filme de carácter político manipulativo, de uma obra com esforço genuíno em entregar uma realidade existente?
BR: A distinção é-nos fácil por várias razões. Desde logo pela plataforma utilizada para a call internacional, FilmFreeway, muito eficiente para canalizar produções independentes e de autor marcadas por um elevado nível de liberdade do pensamento subjacente à criação cinematográfica. A par disso, possuímos ferramentas pessoais, adquiridas também em virtude das nossas profissões, que nos permitem identificar mensagens que visam a promoção de uma determinada doutrina ideológico-partidária, ou seja, a propaganda. E sem esquecer que visualizamos um número indescritível de filmes, tendo em conta a quantidade de submissões que recebemos (foram mais de 3000 para a edição deste ano), o que inevitavelmente apura todos os nossos mecanismos de identificação da veracidade da realidade das várias representações que cada filme nos traz.
FC: Quais os vossos maiores exemplos de cinema político transformativo, aqueles filmes que mais vos afetaram a nível pessoal?
BR: A resposta é óbvia: a maior parte dos filmes que seleccionámos ao longo destes anos para o Festival Política. E a nomeação de alguns é uma perfeita injustiça para os demais pois foram inúmeros os filmes que nos inquietaram ao ponto de nos tirarem o sono, literalmente. É sempre transformador, porque profundamente doloroso, o confronto com as diferentes realidades das várias naturezas da discriminação feito através de uma lente sem filtro e focada na pessoa discriminada, tal como encontramos na esmagadora maioria dos filmes seleccionados.
FC: O filme Alcindo, de Miguel Dores, vai ter uma sessão exclusiva para a comunidade escolar em Loulé. Qual a importância pedagógica e o impacto que filmes como este podem ter na educação dos mais jovens?
BR: O filme Alcindo parte da dimensão biográfica de um português afro-descendente para mostrar que vivemos num presente marcado por violência racial e desigualdades. Alcindo foi morto em 1995, antes do nascimento das/os alunas/os da escola secundária de Loulé, mas as recentes mortes de Luis Giovani e de Bruno Candé ou a detenção violenta de Cláudia Simões são a versão mais publicitada e actual daquilo que o Miguel Dores documenta. Sabemos que a memória inscrita na história escolar e na esmagadora maioria da narrativa mediática, incluindo a política, negam o racismo, agudizando esta doença na sociedade portuguesa- e as doenças só são tratadas quando devidamente diagnosticadas e assumidas. Gostaríamos que as gerações mais jovens e as vindouras fossem capazes de fazer aquilo que até agora não tem sido feito em matéria de racismo: colocar o país em frente ao espelho.
Acreditamos que o cinema documental de causas é um precioso veículo para desenvolver uma perspectiva abrangente e empática relativamente a uma realidade que clama por uma necessidade de mudança e, por conseguinte, devia ser assumido como instrumento de instrução e incorporado como conteúdo obrigatório da educação formal do sistema nacional de ensino.
FC: O que esperam para o futuro do Festival Política?
BR: Uma longa vida recheada de parceiros, protagonistas e público que nunca deixarão de acreditar que a igualdade e a não discriminação são as únicas vias possíveis de sobrevivência e os principais pilares de uma digna existência.
_
Entrevista conduzida por João Iria, Rafael Félix e Sara Ló
Fotografia © Festival Política