Entrevista | André Costa – Realizador de “Fato Macaco”

de Fio Condutor

Uma estranha figura fictícia percorre a narrativa de um documentário. Uma mascote com um “fato macaco”, percorre os bairros de Setúbal. Desde as suas origens como género, o documentário procura capturar uma ínfima ou colossal realidade e transmiti-la para uma audiência que desconhece a sua dimensão. É encontrar ideias, temas, histórias, onde ninguém procura. Na criação intitulada Fato Macaco, Holy Clowns/Rui Paixão e Dona Edite reúnem-se para elaborar uma produção única inserida no projeto “Rota Clandestina” com o apoio da Câmara Municipal de Setúbal, onde a ficção enaltece a realidade para os/as trabalhadores/as da região de Setúbal. A propósito da sua estreia nos cinemas com distribuição nacional assegurada pela Cinetoscópio, no dia 18 de Maio, tivemos a oportunidade de entrevistar André Costa, o realizador desta obra única, e descobrir mais acerca das suas origens e dos seus objectivos.

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Fio Condutor: Gostaríamos de saber mais sobre ti. Fala-nos um pouco do teu percurso e de como surgiu o interesse em trabalhar no mundo do audiovisual.

André Costa: O meu interesse em trabalhar com aparelhos que registem imagens e sons tenha talvez nascido dentro da loja de fotografia onde a minha Mãe trabalhava, na Graça. Ela sempre me deu liberdade para tocar nos negativos, espreitar por buraquinhos de vidro e plástico, e então deve ter sido por aí. Sobre o meu percurso pessoal, só no final do 12° ano é que decidi virar para este lado, até lá quis ser muita coisa, inclusivamente cheguei a ter ilusão de poder jogar futebol profissional. Depois de estudar cinema na Lusófona e ter aprofundado pós-produção vídeo na ETIC_, saltitei entre muitos estágios não remunerados como a TVI, Vo’arte, BETA-I (aqui ainda me pagavam o passe L123 para vir de Vialonga até Lisboa) e em paralelo telediscos e outros trabalhos de edição, acabo por integrar o Studio Vhils, Underdogs Gallery e SolidDogma. Mais tarde passei pela produtora de audiovisual FIM, aqui mais projetos relacionados com publicidade e instituições, e mais recentemente fundei, juntamente com a Mariana Machado, um pequeno coletivo chamado Dona Edite Filmes, que conta com dois anos de vida.

FC: Fato Macaco é uma anomalia no habitual panorama de estreias cinematográficas de Portugal, por ser um documentário com elementos de ficção e ter apenas 48 minutos. Para quem não conhece a história, como a apresentarias?

AC: Esta é uma história de uma “mascote” que tenta sobreviver para lá do seu limite. Limite de cansaço, financeiro e por vezes, de dignidade também. No caminho, encontra tantos outros trabalhadores e sobreviventes que lhe falam dos seus limites e nos quais se revê. Leva para “casa” pedaços dessas memórias e de lixo que encontra na rua, de forma a poder dormir melhor.

FC: Partindo de um projeto original da co-criação de Rui Paixão/ Holy Clowns e Dona Edite, como é que Fato Macaco chegou até ti e como surgiu a oportunidade de o realizar?

AC: O Rui Paixão foi quem convocou a Dona Edite para esta aventura. Inicialmente era para ter sido uma intervenção de rua por parte do Rui no bairro Grito do Povo (convite feito pelo Renzo Barzotti da Rota Clandestina) mas ele decidiu que queria fazer algo que se assemelhasse a um filme. Num momento inicial havia muito pouca informação, apenas uma fotografia de um rapaz chamado António Mendes que foi morto a tiro no início do Sec. XX pela GNR, numa manifestação a favor dos direitos dos trabalhadores, e as histórias de resistência de outros dois históricos de Setúbal, a Mariana Torres e o Jaime Rebelo. A partir daqui, nós os 3 fomos desbravando caminho deslocado-nos are ao bairro grito do povo, falar e estar com as pessoas de la, pesquisa em livros que pudessem conter mais historias semelhantes a daquelas 3 pessoas e chegamos a uma sinopse que, pelo menos, já nos centralizava a ideia geral do filme para mim: resistência.

FC: O documentário foi filmado no Bairro dos Pescadores, Bairro do Grito do Povo e no centro da cidade de Setúbal. como correu o processo de gravações? Quais foram os principais obstáculosos e maiores surpresas que encontraram nestes locais?

AC: Para nós era fundamental conhecer pessoas e histórias nos primeiros dos 10 dias de rodagem que tinhamos estipulado. Tinhamos ações para a nossa mascote definidas para a cidade de Setúbal e Bairro Grito do Povo e algumas entrevistas, no caminho conseguimos desenvolver e estabelecer relações pessoais com algumas das pessoas que prestaram o seu tempo para nos contar histórias de luta, resiliência e resistência. O maior obstáculo que antecipamos era a construção da barraca onde a mascote viveu durante 10 dias e o impacto que isso poderia trazer ao bairro, mas na verdade, o que poderia ser o maior obstáculo foi o elemento curioso e unificador entre nós e as pessoas.

FC: Simultaneamente com a parte documental, existe também a história de um personagem ficcional (interpretado por Rui Paixão) ligado aos temas centrais explorados no filme. Quem é este artista de rua que deambula pelo Bairro dos Pescadores em Setúbal? O que representa? Tem nome?

AC: Acho que a personagem é só mais uma pessoa como tantas outras que tenta sobreviver com as ferramentas e conhecimento que tem. Por acaso tem nome e foi atribuído pelos utentes da APPACDM numa reunião prévia que tivemos com eles e com os responsáveis pelo espaço, o nome que ficou depois de várias sugestões foi “BADETA” e que ligou muito bem com a personagem que nunca descansa e nunca dorme, pois o alerta e sentido de trabalho sobrepõem-se a tudo o resto. Acho que a personagem representa a soma das historias que fomos ouvindo e lendo ainda durante o período de pesquisa e reperagem e que estão representadas no filme. A personagem não fala em nenhum momento do filme justamente para poder dar espaço e voz a quem quis contar as suas experiências.

FC: Como foi esta experiência como um todo e o que é que mais retiras dela?

AC: Foi muito enriquecedora naturalmente, não só por poder trabalhar com um conjunto de pessoas inteiramente dedicadas de corpo e alma ao projeto, mas também por ter conhecido mais umas quantas que adicionaram alegria ao meu dia-a-dia e com isso gerou-se muita empatia e foi muito gratificante sentir isso.

FC: O Cinema Português tem expandido em níveis de criatividade e histórias por contar, contudo, continua a ter dificuldades em atingir o grande público português. Qual pensas ser o motivo para isso e que soluções achas necessárias para inverter essa tendência?

AC: Eu acho que esse problema vai sempre existir e tem de haver firmeza por parte de quem faz filmes em Portugal para continuar a encontrar novas narrativas, novas estéticas, novas histórias que possam ser cada vez mais cativantes para o público em geral. E necessário haver espaço para que essas ideias possam existir e possam ser sentidas e compreendidas. Acho que uma das soluções é exactamente esta que está a acontecer com o Fato Macaco, pessoas responsáveis por um espaço de projecção como o Cinema Fernando Lopes, e que, segundo eles, “mesmo sendo um filme que é meio um erro no panorama geral” não hesitaram em expô-lo na sua programação e isso é realmente gratificante. Não podemos estar mais felizes pela confiança que tiveram em nós e no nosso trabalho.

FC: Agora que Fato Macaco está prestes a ser lançado nos cinemas, no dia 18 de Maio, qual será o teu próximo projecto, do qual nos possas falar?

AC: Neste momento estou envolvido num projeto de curadoria de um festival de arte urbana “MAR MOTTO” em Faro juntamente com a Mariana Machado, algo que nunca fizemos mas o mote da Dona Edite é esse, procurar sempre novos caminhos e cruzar disciplinas, e também estamos na fase de pesquisa e recolha de relatos para a nossa primeira curta-metragem de ficção bem como a preparação de um documentário sobre a criação de uma peça de teatro a apresentar a em 2024.

 

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Entrevista por Pedro Ginja e Sara Ló

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