Ennio (2022)

de Rúben Faria

A melodia é a chave

Biografar uma das figuras mais importantes da história do cinema, não é tarefa fácil nem que se inveje, muito menos quando a mesma pessoa foi também uma das mais influentes no mundo da música, do século XX. Ennio, realizado por Giuseppe Tornatore, o cineasta responsável por Cinema Paradiso (1988), é um documentário que se propõe a fazer isso mesmo, a mostrar o que foi a vida e a jornada criativa de Ennio Morricone, um dos maiores compositores do mundo.

O toque interessante é que todo o filme é comentado pelo próprio Ennio Morricone, servindo como uma espécie de guia turístico da sua própria vida, bem como uma porta de entrada direta para a sua mente, as suas emoções e o seu ponto de vista mais pessoal. É, de facto, uma abordagem interessante, pois traz um olhar diferente a este tipo de documentários, dando um aspeto de autobiografia a toda a obra. No entanto, também pode ser visto como algo mais parcial e até um pouco narcisista, ao ter uma pessoa a contar a sua própria visão de todos os acontecimentos, sejam bons ou maus. Mas como estamos a falar de Ennio Morricone, é capaz de ser dos poucos que o merece fazer.

Para celebrar este ícone musical, participam nomes de todos os cantos e feitios: John Williams, Hans Zimmer, Quentin Tarantino, Clint Eastwood, Bruce Springsteen, e até mesmo a nossa lusitana Dulce Pontes, que chegou a trabalhar com o próprio Ennio. Toda esta presença estelar vem comprovar a imortalidade que este compositor conseguiu atingir, mas por incrível que pareça, a maior parte destas figuras tem uma aparição muito curta e limitada. O espectador passa o seu tempo com o próprio Ennio e com pessoas que influenciaram a sua vida desde o início ou estudaram a mesma, de forma meticulosa. Desta forma, existe mais tempo de antena para nomes como Bernardo Bertolucci e Gianni Morandi, que mesmo não sendo tão sonantes como os anteriores, conseguem dar uma opinião mais íntima e inesperada.

Este documentário é estruturado de uma forma muito simples e básica, nos típicos moldes de talking heads, intercalado com imagens ou fotografias de arquivo, relacionadas com o tempo que está a ser debatido. E nesse ponto o filme também é simplista, com uma cronologia direta, desde que Ennio começou na música, até aos tempos modernos. Vai-se ocupando com as músicas mais icónicas que fez para cinema, juntamente com alguns vislumbres de como era o seu processo no mundo da música contemporânea e a influência que nela teve. Esta estrutura simples é uma das poucas coisas que impede este documentário de voar mais alto. Mantém-se expositivo e quase comercial, o que tira um pouco o sabor à magia que Ennio trazia ao cinema com a sua experimentação emotiva.

Felizmente, essa magia que se dissipa não é muita e não retrai o filme como um todo. Isto porque nos deixa ver como Ennio conseguia criar música que por si só parece estar a falar, como se capaz de articular palavras bonitas que, verso atrás de verso, se juntam numa espécie de poesia melódica e bela, criada de forma natural por alguma força maior. Era essa naturalidade que rodeava Ennio, que escrevia notas em partituras de forma tão orgânica, fazendo-nos acreditar que nasceu a saber essa linguagem antes de sequer falar italiano. É maravilhoso ver o maestro explicar algumas das suas ideias e a forma como vê as suas músicas, pois fá-lo de forma muito entusiasmada, proferindo as suas notas e melodias mais icónicas, como se tivesse todos os instrumentos de uma orquestra dentro das suas cordas vocais. A sua mente respira música e poucas coisas tocam mais do que vê-lo provar isso ao emocionar-se várias vezes, de forma ligeira, com alguma lembrança que tenha sido chave no seu percurso.

É realmente uma jornada digna de ser documentada, uma vida que merece ser exaltada porque enquanto cá esteve, exaltou tudo e todos com as suas incríveis sinfonias. Foi capaz de colorir os nossos sonhos e até de mudar não uma, mas duas indústrias colossais. Deitou abaixo preconceitos para com música do cinema, e revolucionou a música contemporânea do século XX para a frente, tendo-se tornado naquele que é, muito provavelmente, o maior compositor do seu tempo. Era um homem humilde, apaixonado e até ingénuo para com a sua própria genialidade. Foi uma pessoa que deu imenso e pediu pouco em troca, colmatando a sua proeza artística com um ser humano merecedor. E de alguma forma, na tarefa hercúlea de englobar esta imensidão, este filme fez um bom trabalho.

Obrigado, Maestro.

3.5/5
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