Num mundo de conexão ininterrupta mas onde as ligações são efémeras e limitadas pelas aparências, ou pelas expectativas criadas na nossa cabeça, já não há espaço para defeitos ou erros. Cada um é descartado de acordo com a estação do ano, ou das vontades da turba, e os visados tendem a desaparecer na obscuridade para serem substituídos pelo novo “sabor” da estação. No mundo dos ricos e poderosos esta comodidade é ainda mais apetecível, o de estar na ribalta e no olho do mundo. Adorado, ou mesmo glorificado por muitos, é sinal de relevância e de valor pessoal mas este é um sítio onde nem sempre os valores e a decência humana têm lugar. Pietro Castellitto explora esse manancial de idiossincrasias de uma família rica, num contexto muito próprio da sua Itália, em que uma juventude de olhar vazio e futuro incerto procura um sentido para a vida.
Enea (Pietro Castellitto) é um destes jovens em busca de manter o legado da sua família intacto enquanto equilibra um negócio de restauração e outro de tráfico de droga, na companhia do seu melhor amigo Valentino (Giorgio Quarzo Guarascio). O retrato de uma juventude perdida em festas intermináveis e de uma geração anterior expiando os seus pecados passados.
Há algo de estranho, alienígena arrisco mesmo dizer, nesta visão da juventude italiana segundo Castellitto. Reconhecemos e identificamos os problemas de cada uma das personagens mas nunca se estabelece a ligação pretendida com o espectador. O argumento de Pietro Castellitto sabe do que fala, com o próprio realizador a fazer parte dessa geração e, com ele próprio como filho do actor Sérgio Castellitto, refém dessa mesma necessidade de manutenção de um legado que herdou sem pedir. É clara a sua ligação emocional a estas personagens mas a conexão aos sentimentos do espectador nunca acontece. A maneira fria como trata todas as suas personagens atinge um ponto em que chega a retirar qualquer manifestação física de afecto das mesmas. Estes são ocultados pelo apagar de luzes, escondidos por objectos ou mesmo retirados por intermédio de edição. Uma decisão estranha mas que, concorde-se ou não, reforça a inabilidade desta geração de amar. Mesmo a menção de amor soa sempre a oca e desprovida de qualquer sentimento com Enea, cuja actuação de Sergio Castellitto leva-lo a extremos difíceis de suportar chegando a roçar a sociopatia. A sua interpretação explora bem a ausência de compasso moral e representa na perfeição essa geração italiana perdida, representada também por Valentino, que opta por uma interpretação de contenção sentimental e devoção cega, bem patente no olhar triste perante o amor não correspondido de Enea. A geração mais velha tem os valores familiares no sítio certo mas evita processar os seus sentimentos mantendo também uma fachada para o mundo que os envolve. Tanto Sérgio Castellitto, no papel de pai de Enea, e Chiara Noschese, no papel de sua mãe, são essenciais para mostrar a diferença total entre gerações tão próximas e reforçar a impotência de qualquer mudança possível. O próprio conceito de fantasia e de algumas sequências, como forma de exagero dramático, contribuem a favor deste sentimento dominante. Mesmo na tragédia anunciada há uma beleza difícil de negar mas o sentimento de incredulidade é o mais dominante.
O humor acompanha a mesma bitola e serve-se frio e seco, sempre rodeado de violência, aqui também como substituição da falta de empatia de que todos padecem. O olhar para o próprio umbigo é o sentimento dominante. O que EU quero é o único caminho possível, como moto, e funciona como mais uma alfinetada ao mundo ocidental e à perda de valores. Os truques de edição, o uso de câmara lenta, os close ups constantes das personagens ou tantos outros “truques” cinematográficos que não quero revelar, são usados para reforçar essa comicidade e de marcá-lo como uma sátira feroz e um grito de alerta para o futuro da humanidade.
Falar da banda sonora e da música italiana utilizada é também essencial pois a mesma imiscui-se na narrativa e confere uma identidade muito específica. A “italienidade” a que me refiro acaba como uma benção e uma maldição, ao mostrar a voz única e original do realizador mas a também alienar o espectador que quer conquistar por não conseguir acompanhar as inúmeras referências utilizadas.
Mais do que um retrato da juventude alienada de Itália, este é um grito de revolta de Sergio Castellitto. Numa indústria italiana do cinema virada para o humanismo e realismo da vida quotidiana, o realizador injecta fantasia e humor negro, revelando-se como um bem-vindo escape do panorama cinematográfico actual vindo de Itália. Apesar das suas limitações emocionais, e de empatia nas suas personagens, existe algo verdadeiramente original a borbulhar em Enea.