Emilia Pérez já era muita coisa mesmo antes de ser. Uma produção Saint Laurent que faz com que o espectador menos atento possa confundir os primeiros segundos do filme com uma publicidade de perfume, é também, mais uma aberração de distribuição que estará em exibição nos cinemas e na Netflix quase em simultâneo e conta com um realizador francês, uma protagonista espanhola e uma história mexicana. Tudo isto poderia não significar nada para a história mas esta “caminha”, ou melhor, este “pijaminha” de produção reflete bem a manta de retalhos que é o filme.
Emilia Pérez é uma história de redenção e de afirmação, que mostra o impacto que os cartéis têm no México e os problemas sociais e políticos que causam, ao mesmo tempo que mostra as dificuldades emocionais e logísticas de um processo de afirmação de género ao mesmo tempo que mistura elementos de ação, drama e comédia. Um filme que promete ser tanta coisa, mas que falha logo ao encontrar o tom ideal para coser tudo isso e realmente impactar quem o vê.
A protagonista, Karla Sofía Gascón, interpreta a personagem de Manitas del Monte, o impiedoso líder de um cartel mexicano que decide mudar de vida e finalmente viver à luz da sua verdadeira identidade e tornar-se a mulher que sempre desejou ser, e para isso, alicia Rita (Zoe Saldana), uma advogada que vive na sombra e insatisfeita, a ajuda-la neste processo.
O filme tem uma premissa inovadora e provocadora, mas a maior surpresa acaba por ser o facto de ser também um musical. A necessidade de trazer mais diversidade para os circuitos comerciais pode fazer com que seja mais fácil desculpar algumas falhas na história e deixar-nos levar pela cativante personagem de Emilia Pérez. No entanto, a forma humorística quase tosca com que aborda alguns temas, coloca em questão a seriedade da história. O arco da protagonista é tão grande que o torna demasiado fantasioso e inverosímil num filme com contornos muito reais. A transformação interior desta personagem é muito maior do que a física e acontece sem se ver, o que nos faz questionar sobre as suas motivações e até mesmo aquilo que sentimos relativamente a ela.
O filme perde-se dentro de si, e deixa abertas muitas das portas que abre: a relação de Emilia com Rita; a relação de Emilia com Jessi, a sua ex-mulher, papel interpretado por Selena Gomez, e com os filhos; a forma como, de repente, se arrepende de todo o mal que fez; o impacto que isso tem no mundo que a rodeia; o próprio arco de Rita que não é explorado, nomeadamente a sua vida amorosa que é mencionada mas sentimos que não se relaciona com nada, porque apesar de existir sempre uma tensão entre ela e Emilia esta também não é explorada e a sua satisfação profissional; o arco de Jessi e a forma como foram ambas manipuladas por Emilia durante toda a sua vida. Tudo isto em vez de adicionar complexidade ao filme parece torna-lo ainda mais superficial e apenas confuso. O pior do filme acaba por ser a gestão de expectativa porque conseguimos ver todo o potencial inexplorado que parece ser sacrificado por uma narrativa que não sabe bem o que quer dizer.
Nada na história é leve e isso entra em conflito com a forma como o realizador e co-argumentista Jacques Audiard decidiu contá-la, e essa dissonância pode ser, na realidade, o maior problema do filme. Não costumo ficar incomodada com filmes que não apresentam respostas ou que não exploram a fundo todos os temas em que tocam, no entanto, aqui isso parece criar alguma resistência e questiono-me se não será pela forma como isto é apresentado entre canções, danças e piadas. Estes temas acabam por parecer superficiais e as escolhas mais ousadas acabam por parecer quase caricaturais e jogar contra as intenções do filme. Apesar de adorar a audácia e a tentativa de normalizar a experiência trans com a inclusão de alguns elementos de cariz cómico, como uma letra que enumera uma série de cirurgias plásticas, num filme onde se que abordam tantos temas pesados, parece apenas uma abordagem simplista e redutora de tudo o representa.
Por falar em letra, quase que é fácil esquecer que o filme é um musical e até bastante competente. Os números musicais são pertinentes, não são excessivos e avançam na narrativa, por isso, não são impeditivos para quem não é fã do género. Algumas das músicas não são propriamente cantadas mas sim recitadas com musicalidade, o que também ajuda a ser bem recebido por um público maior.
Uma das melhores escolhas é a de Karla Sofía Gascón para interpretar Emilia Pérez que apesar de não conseguir atingir a profundidade emocional necessária acredito que seja um problema mais de guião do que interpretação e acaba por ser um beacon deste filme com uma personagem forte e cativante que consegue representar a experiência trans com respeito e incluir detalhes que adicionam maior realismo à sua interpretação. É também digno de nota a sua incrível transformação e coragem para desempenhar ambos os papéis, Emilia e Manitas.
Não sei se a forma como o filme termina pretende ser irónica, mas deixa-nos a pensar se será justo, independentemente da disforia de género, apagar alguém e viver uma segunda vida. Será que o impacto positivo poderá equilibrar todo o mal que foi feito antes? E a que custo? Será que esta glorificação de uma pessoa que contribuiu para aquilo que estava a tentar reparar é sinal de que devemos dar mais segundas oportunidades, ou uma manifestação de hipocrisia? E até que ponto Emilia Pérez é merecedora deste estatuto, uma vez que nunca deixou de usar e manipular as pessoas à sua volta para poder fazer prevalecer a sua vontade.
Acho que podemos fazer uma comparação entre os problemas de identidade da personagem principal e do próprio filme que não conseguiu definir o seu género, mas não sei se tenho o cuidado e a piada necessária para fazê-lo. Por isso, vou usar as palavras de Jessi para descrever aquilo que fica do filme, ainda que não seja exatamente essa a zona do corpo que me faz doer.
“My pussy still hurts just by thinking of you.”