O documentário de Francisca Marvão foi apresentado no Indie Lisboa, estamos a caminhar para 3 anos, e será agora introduzido ao streaming pela mão da FilmIn, o que não deixa de ser curioso para um filme que claramente mergulha num género que depende da reinvenção constante para sobreviver, ser no fim trazido ao público geral através do tipo de plataforma que veio reinventar a forma como consumimos o cinema.
A nova vida dada a Ela é uma Música e a outros filmes como este, construídos com recursos escassos e uma gigante paixão, é talvez o maior argumento a favor destes serviços na discussão que opõe o streaming às salas de cinema, e que parece não ter fim à vista, muito menos consenso. Felizmente, este documentário que se propõe a cartografar o caminho percorrido pelo rock feito no feminino desde os primeiros passos de Zurita Oliveira nos anos 60′ até à modernidade quase anárquica das Panela Depressão ou Clementine, e que conta com vozes como Lena D’Água, Xana dos Rádio Macau, Ana Deus dos Três Tigres Tristes ou Ana da Silva das The Raincoats para contar as suas histórias.
A verdade é que documentários talking heads, quando protagonizados por intervenientes, não só batidos no assunto, mas verdadeiramente apaixonados por este, tornam até uma conversa sobre selos postais dos anos 40’ algo aceitavelmente watchable. Já Ela é uma Música traz as suas vozes para cafés típicos com pão, queijo, álcool e uma bagagem de nostalgia e otimismo para com o futuro, que se torna muito mais que um filme com um tema central interessante, mas também uma viagem pelas memórias que a história coletiva apagou, como tantas vezes aconteceu a grupos artísticos de diferentes mediums que não fossem constituídos por homens brancos cis.
Não é por acaso que diversas vezes estas mulheres se referem ao rock como um símbolo de desobediência juvenil e de emancipação das imposições sociais que as rodeavam em casa e fora dela, maioritariamente das vozes mais velhas, abrindo-se espaço para a reflexão do porquê das mulheres abandonarem as bandas com maior frequência que os homens, com explicação simples quando olhamos para a diferença de expectativas sociais entre géneros e que várias vezes as caras que passam pelo filme vêm lembrar com um misto de frustração e resignação para com uma realidade que por si só já nasce desequilibrada. Há também uma espécie de paralelo com a nova geração de mulheres de guitarras em punho que continuam a lidar exatamente com o mesmo “jogo viciado” quase 60 anos depois da entrada do rock na cena portuguesa, embora haja algo profundamente otimista em ver artistas longe de estarem em espaços de privilégio a tentarem combinar um ensaio a meio da semana quase num sistema de batalha naval para perceber como contornar os horários de trabalho de todos os elementos. É a música como forma de escape e de resistência para com um sistema que não lhes é gentil, mas que não parece desencorajar nenhum dos brilhantes talentos musicais com que Francisca Marvão nos presenteia e que vão aparecendo nos intervalos dos relatos que vamos recebendo durante a hora e meia de duração de Ela é uma Música.
É um documentário que podia parecer consideravelmente deprimente pois a História feita por mulheres nas artes (ou em qualquer outra coisa se quisermos ir por aí) é uma História que o mundo social quis apagar e o filme podia facilmente ter olhado para estes períodos e dizer “já viram o que podia ter sido?”. Não seria um pior filme por isso, e há garantidamente também um lugar para isso dentro de Ela é uma Música, no entanto é bem mais do que isso. É um filme que não olha para o passado do rock de forma ressentida, mas sim como um conto agridoce feito de memórias bonitas envoltas em suor, amplificadores, desafios e sonhos perdidos, e escolhe celebrá-los de forma boémia enquanto olha para “as mulheres do Futuro”, como diz Marvão, e lhes diz “agora são vocês”.
“As pessoas interessam-se” diz Cláudia Guerreiro dos Linda Martini, e filmes como Ela é uma Música, estejam eles no streaming ou nas salas, garantidamente fazem-nos interessar.