“Não há nada mais horrível do que ver um homem apaixonar-se. É pior do que ver um corpo sem coração.”
Reconhecem aquela sensação de se ter uma certa expectativa específica de algo, apenas para se depararem com uma versão ainda mais forte de tudo o que esperavam? Bem, quer reconheçam ou não, foi exatamente isso que senti com este filme: esperava uma sátira de humor seco e algo “estranho”, casada com um olhar artístico e contemplador da vida. Recebi tudo multiplicado e ao mesmo tempo.
El Conde é a mais recente longa-metragem de Pablo Larraín, conhecido recentemente por Jackie (2016) e Spencer (2021), dois trabalhos que não podiam estar mais afastados do que vos trago hoje. A premissa é a de um velho e acabado vampiro, por volta dos seus razoáveis 250 anos, que decide que está na altura de morrer e faz para que isso aconteça, isto é até uma jovem freira ser trazida para o turbilhão de heranças e outros problemas familiares.
O que faz esta obra ser cinema no seu mais artístico é que é inegavelmente sobre a vida. Com isto refiro-me que se trata de uma sátira em género, com a sua verdadeira essência numa análise intrigante e curiosa sobre a morte, o amor, os pequeninos e mesquinhos problemas humanos e a sua enorme implicância a nível social e existencial. Existe uma certa trivialidade em tudo o que é apresentado, seja a mesma referente aos momentos mundanos da vida normal impressa num vampiro, ou a resolução de problemas fantásticos e macabros como se fizessem parte do quotidiano.
Não sei qual é o fascínio pelo dia-a-dia dos vampiros, mas claramente que isto remeteu a What We Do In The Shadows (2014). Só que enquanto o mockumentary de Taika Waititi e Jemaine Clement descontrói muitos dos elementos conhecidos desta mitologia gótica através do seu humor característico, El Conde apodera-se dos mesmos não só para os satirizar de forma mais suave, como também para servirem de tela branca para a sua análise ao espirito humano e às suas imperfeições até mesmo naquilo que de melhor tem. Esta é uma história muito mais negra, pesada e até mesmo desoladora do que a longa referida anteriormente. É um filme agressivo, violento e que não se esconde das atrocidades da existência de um vampiro. Aliás, impõe uma banalidade a todos os horrores, como se a obrigação de termos de os aceitar como normais fizessem parte desse olhar frio sobre a humanidade. E se calhar até fazem.
Fica-se mesmo com a sensação de que qualquer inconveniência do dia-a-dia que aconteça pode levar a consequências trágicas mesmo a nível mundial, tudo graças a um argumento sólido escrito pela dupla de Pablo Larraín e Guilhermo Calderón, argumento esse que quase se orgulha em protagonizar um monstro, uma personagem fascista e vil. Esse orgulho é compreensível quando se nota que não existe uma única personagem no filme que seja “bom” ou “com um bom coração”. Todos, de uma forma ou de outra, são mal-intencionados e egoístas, provando assim o seu ponto de que humano ou não humano, a bondade tem dificuldade em crescer de qualquer das maneiras. O mais interessante de tudo é que o amor cresce e floresce no meio deste negrume intenso, seja o amor mórbido entre pais e filhos, o amor perverso entre amantes dúbios ou o amor perigosamente inocente de um velho apaixonado. O amor, mesmo sendo assumido pelo filme como uma das coisas mais bonitas do mundo, é retratado com a mesma frieza de tudo o resto, sendo resposta para tudo e ao mesmo tempo reduzido a quase nada. A potenciar tudo isto está um humor deprimido e por vezes desconfortável, que consegue, em momentos, introduzir um surrealismo estranho mas ao mesmo tempo acolhedor. Esta sua imprevisibilidade permite a que desbotem comentários a pessoas que talvez vivam mais tempo do que aquilo que deviam ou à ganância inerente na condição humana.
A conduzir esta construção a bom porto está um elenco forte e coeso. Todos entregam aquilo que o guião pede e até mais, pincelando onde podem pincelar, como é o caso de Jaime Vadell que dá a pele ao titular El Conde. Jaime é exímio, conseguindo ser hilariante em qualquer momento sem nunca perder a sensação de inquietação que rodeia o mítico Conde. É capaz de o fazer seja com a entrega de uma fala sublinhada por um leve sorriso ou com um simples olhar de retorno a outra personagem, vencendo assim qualquer cena que entre. E que bem que estes olhares falam, tendo em conta que o filme está povoado por uma narração às vezes semelhante a um documentário, que ao início se estranha mas que acaba por se justificar até ao final e que não impede que mesmo assim muito – mesmo muito – seja dito nos silêncios e nas pausas tão bem implementadas pela realização.
El Conde é lindíssimo no que toca à fotografia e bem que merece a sua nomeação por parte da Academia. A sua beleza nem se encontra propriamente na sua estética, mas sim na forma como capta a textura deste mundo e a falta de encanto no mesmo, algo já muito bem trabalhado pela direção de arte. É apresentado a preto e branco, uma escolha que não parece ter uma justificação muito óbvia mas à qual não me oponho, se é que devo sequer questionar em primeiro lugar. Uma menção menos bonita vai para a montagem, que pareceu em vezes não estar na mesma sintonia que o ambiente apresentado e que o guião pedia. Parecia um pouco tonta e perdida, até mesmo apressada, como se não soubesse onde brincar e onde acalmar. Não se tornou um problema enorme ao longo do filme, mas a sua presença fez-se notar.
Com isto fica abordado um filme muito interessante que merece ser mais falado do que aquilo que está a ser. A sua presença nos Óscares que se avizinham pode ser pequena, mas não é por isso que perde a originalidade que transpira e que vive dentro de si. Uma criatividade que não deveria pedir mais atenção porque a sua mera existência deveria ser razão suficiente.