Um filme de acção, que não é um filme de acção?
Seria mais fácil categorizar Drive pelas coisas que não é, do que pelas que é: é um western – pela jornada clássica -, é um filme de exploitation, um arthouse film, é um car slasher (como Death Proof de Quentin Tarantino); um policial (como Bullitt de Peter Yates), um neo-noir (como Taxi Driver, de Martin Scorcese).
Mas Drive é muito mais do que uma compilação de géneros: é uma amálgama de estilos e de influências, onde os limites se esbatem de forma tão natural que se torna difícil de lhes perceber tanto o início, como o fim. É um conto de fadas moderno, onde acompanhamos o protagonista na sua balada pela cidade, pontuada com construções sónicas electropop europeias dos anos 80. Um universo pintado com uma paleta muito rica de neons atmosféricos, silêncios harmoniosos, e de momentos viscerais, de uma estética sóbria, mas altamente estilizada.
Aqui, o protagonista é Driver – Ryan Gosling -: um anti-herói controlado tanto pela sua natureza, como pelos seus desejos. O interior do carro é o seu universo, e o mundo exterior é um lugar estranho e distante. Vê a realidade através do vidro do seu carro (o mundo que conhece) e que o remete para o que melhor sabe fazer: conduzir.

Parte herói de western, parte herói trágico de noir: ele é denso e pesado. Ele não se sagra pelo bem: sagra-se pelo perverso. É uma entidade negra que alcança a absolvição (e uma quase humanidade) com recurso a actos desumanos, onde o vemos mais exposto e logo, mais humano. Tem uma fachada altamente impessoal e uma calma não-humana; as pessoas pouco ou nada significam para ele. A violência é o seu momento de escape e é através dela que ele se relaciona com o mundo real. A absolvição é um dos temas centrais do filme. A jornada do herói é algo que nunca muda: a moral é que muda, concluindo não com um desfecho feliz, mas com um desfecho (in)feliz, mas possível.
Ainda assim, as personagens de Drive são construções muito humanas. Independentemente dos seus motivos ou da natureza das suas ações, também elas se encontram permeáveis à mudança. Elas não são absolutas, e os seus estados também não o são: elas adaptam-se; alteram-se. Aquilo que foram; aquilo que são; aquilo a que aspiram a ser. Nada é permanente, porque os seus motivos, tal como os nossos, também não são perpétuos.
As interacções entre personagens são – quase sempre – vistas numa óptica quase “voyeurística”, com um registo e cadências muito delicados e naturais; não são uma transgressão. O filme funciona como uma peça de teatro, e nós somos o público. O olhar é o foco deste filme: estamos sempre – aparentemente – próximos das personagens, mas a verdade é a de que não estamos realmente: somos só os observadores da ação.
No filme, as músicas encerram também em si partes da própria história – música não só pela estética, mas também pela história -. A entrada em cena do super (anti) herói do filme pinga estilo graças aos versos da Nightcall dos Kadinsky – I’m giving you a night call / to tell you / how I feel / I want to drive you through the night -, que, ritmadas por conjuntos de sons melancólicos, electrónicos, e quase predatórios, pintam um retrato vívido do protagonista. É a música que enquadra as diferentes sequências, e que dá pistas para as relações íntimas e não verbais que se estabelecem entre personagens: o estado aparente de estoicismo generalizado ao ritmo do qual a história se desenrola não é gratuito: aproveita-se de maneira inteligente e elegante das histórias encerradas nas letras das músicas para gerar tensão em momentos onde a palavra forçosamente não é falada, num uso mais liberal de outros níveis de subtexto.
As luzes acentuam as ambiências e são os néons hipersaturados que dão a aura decadente e synthpop que tão bem define o estilo visual de Refn. Todos estes elementos desenham um mundo de sonho com fisicalidade quase corpórea. É um trabalho de luz belo, que nos faz pensar em obras de Caravaggio, Rubens, ou Vélazquez. Há uma encenação elaborada com intricados jogos de reflexos, e contrastes acentuados entre claro e escuro nas composições visuais. É um desenho quase barroco, de imagética dramática – e teatral – forte, onde os temas de êxtase, martirismo e mortalidade são frequentes e intencionais.
O realizador apropria-se dos códigos visuais do mundo da moda para servir a sua narrativa: os elementos gráficos da violência são aqui glamourizados. O visceral é perturbadoramente belo, e palatável. Tanto o é, aliás, que muitos destes momentos mais gráficos facilmente poderiam passar por campanhas da Yves Saint Laurent (como as para o perfume “Opium”), com a sua estética irreverente e de quase sonho, muito ao jeito do que acontece no filme.

É importante perceber que as relações são problemáticas. E são problemáticas porque implicam envolvimento, que por sua vez implica falta de objectividade… Eu consigo racionalizar as (várias) valias artísticas, técnicas, e narrativas do Drive. Mas mesmo antes de o ter feito e racionalizado: gostava. E isso é reflexo directo de uma resposta profundamente indefinida e emocional, e isso é bom, porque é sinónimo de algo que nos move, sem saber bem porquê. Há coisas das quais simplesmente gostamos, e é bom gostar sem saber, porque isso é encanto, e é assim que o encanto funciona: não requer explicação. Nem tem (de).
*Artigo escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.