O prazer da calma, do silêncio e da descoberta pessoal. É assim que me urge começar por descrever Drive My Car. Um filme intimista que, ao longo de 3 horas, retrata uma jornada pessoal que ultrapassa o peso do passado e do luto. É interessante observar o regresso de Ryûsuke Hamaguchi a uma linguagem mais clássica, e, de certa maneira, mais próximo do que foi feito em filmes como Happy Hour (2015).
O filme começa com uma espécie de prólogo. É apresentado ao espectador a história do casal Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), um conceituado ator, e da sua mulher Otto (Reika Kirishima), uma produtora e argumentista televisiva. Os dois partilham uma intimidade quase dupla. Enquanto vivem a sua vida pessoal, onde a sexualidade é um ponto fulcral na comunicação, vivem, também, um processo de criação ficcional, onde os encontros sexuais entre os dois servem de inspiração para a escrita dos argumentos.
Através de jogos de sombras, e de momentos de silêncio profundos, somos levados numa viagem de criação em que não se percebe ao certo o que é real, e o que é ficcional. Essa dúvida, também existe no filme, e acaba por nunca ter resposta visto que Otto morre, logo no início, devido a um derrame cerebral.
Depois disso, o filme avança alguns anos, e podemos observar o protagonista dentro do seu carro. Conduz pela cidade, enquanto ouve uma cassete. Sabemos que a voz é de Otto, e que o texto é Tio Vanya de Tchécov. Uma clara referência aos acontecimentos que se sucedem. De repente somos surpreendidos. Surgem os créditos inicias. Há uma quebra na história. É como se Hamaguchi expressasse a sua vontade de confundir expectativas. É um aviso ao espectador de que algo vai mudar, e que aquilo que foi visto até então era apenas o início de uma longa jornada, que ainda tinha muitos quilómetros para percorrer.
O filme volta à história. Kafuku dirige-se para Hiroshima onde irá dar um workshop de método, que irá culminar na apresentação da peça de Tcheckov já mencionada anteriormente. Na escolha do elenco, ao longo das audições, somos surpreendidos com a chegada de Takatsuki (Masaki Okada), um jovem ator que já tinha trabalhado com Otto, e que também foi seu amante. É-lhe atribuído o papel de protagonista, algo estranho tendo em conta a sua idade.
A representação da peça terá uma particularidade: será interpretada por atores que falam em diversas línguas: japonês, mandarim, inglês e até língua gestual. Assim, o texto passa a ser secundário, e o que está em cima da mesa são os pequenos gestos e expressões que funcionam como método de comunicação. Algo que Hamaguchi explora em todo o filme.
Em Hiroshima, conhece, também, Misaki (Tôko Miura), uma jovem que trabalha para o festival, e passa a ser a sua motorista. Estes dois personagens (Misaki e Kafuku) tornam-se o motor da história, e representam o tempo em diferentes formas. Enquanto o primeiro não se consegue desprender, a segunda quer apenas esquecer. Com o chegar ao final da história, mudam de posição, e o futuro toma lugar das suas ações, estando dispostos a seguir com as suas vidas.
Em Drive My Car, é notório o simbolismo existente. A ligação de Kafuku ao passado através da cassete gravada por Otto, que ouve repetidamente, ou ao apego ao seu carro. O uso de Hiroshima, uma cidade com um grande passado histórico, para local do enredo. E a interpretação inicial da peça À Espera de Godot, de Samuel Becket, que reflete a vida das personagens no sentido de andarem às voltas, à procura de algo que não sabem o que é.
Para terminar, é impossível não falar na capacidade técnica de Hamaguchi, e na forma como este cria e filma diversos ambientes. Constatamos isso na sala de ensaios. Um ambiente frio, com os atores a distanciar-se uns dos outros, em oposição ao momento em que ensaiam na rua, onde o gesto se torna o cento da conversa. Também é interessante explorar esse aspeto na cena em que Kafuku e Takatsuki se encontram a conversar no hotel. Ao mesmo tempo que existe uma proximidade física devido ao local em que se encontram, mentalmente os dois estão afastados devido à passado que envolve Otto.
Drive my Car é um exemplo de filme que brilha no sentido de dar ao espectador uma viagem através da criação, acompanhando de perto o percurso das personagens, e tendo a oportunidade de crescer com eles. O novo filme de Ryûsuke Hamaguchi foi a entrada oficial do Japão para a cerimónia de 2022 dos Oscars, obtendo as nomeação para Melhor Filme, Melhor Filme Internacional, Melhor Argumento Adaptado e Melhor Realizador.