Os sonhos exercem um fascínio tremendo sobre o ser humano desde tempos imemoriais. A incessante busca de um sentido para tudo o que nos rodeia levou-nos também a procurar entender o significado que cada um deles acarreta. Por ser algo sujeito a uma interpretação pessoal as teorias são inúmeras mas assentam sobre dois pontos fundamentais, a manifestação de desejos reprimidos defendida por Sigmund Freud ou como ferramenta da psique humana de buscar o equilíbrio na nossa vida emocional que Carl Jung considera essencial para compreender a mente humana.
Kristoffer Borgli é um claro apreciador das ideias de ambos e reveste os seus filmes de inúmeras referências de psicologia. Sick of Myself (2022) explorou a necessidade de atenção de uma rapariga de Oslo, mesmo pondo em risco a sua saúde e, em ultima instância a sua vida, para prolongar os seus 15 minutos de fama. O seu mais recente filme, Dream Scenario, o primeiro em língua inglesa, explora temáticas similares em que a sátira continua a ter um papel principal. Neste caso o “herói” não é o habitual e a situação é deveras inusitada. Paul Matthews (Nicolas Cage) é um homem com uma vida rotineira que de repente começa a aparecer nos sonhos de estranhos sem qualquer explicação. Com o desejo de melhorar a sua vida e concretizar os seus sonhos decide embarcar no “comboio” da fama quando todas as atenções se viram para ele. Que consequências esperam Paul perante este fenómeno mediático inesperado?
É sempre um prazer assistir à criação de uma personagem por parte de Nicolas Cage. Mesmo nos argumentos ou filmes inferiores, que não é o caso deste em particular, consegue sempre oferecer personagens inesquecíveis, seja pelos bons ou maus motivos. Relembro o injustamente ignorado Pig (2021), em que cria Rob, um homem cheio de mágoas e arrependimento, cujas motivações lentamente conhecemos enquanto tenta salvar o seu porco de estimação. Ou Renfield (2023) em que encarna o Conde Drácula e nunca deixa de ser o mais interessante mesmo quando a atenção não recaí directamente sobre si. E será talvez um dos únicos actores capaz de fazer uma versão dele próprio e não deixar de ser menos do que icónico – falo, claro, de The Unbearable Weight of Massive Talent (2022) – e é óbvio que o céu é o limite para Cage. Aqui a sua personagem Paul é igualmente memorável mas por motivos bem diferentes dos referidos anteriormente. Um professor universitário aborrecido com a vida e acomodado ao lugar permanente que ocupa na universidade. Pouco faz para além do mínimo essencial, mesmo que seja para alcançar o seu grande sonho de ter um livro publicado. Nicolas Cage dota Paul de uma infinidade de pormenores e características próprias pouco lisonjeiras, e que roçam muitas vezes o desconfortável mas que não se esquece de revelar a sua vulnerabilidade e o profundo amor pela sua família, mesmo quando é o pai mais odiado das redondezas. Todos estes factores, apesar de contraditórios, acabam por acentuar a comicidade da personagem, e de a tornar uma das mais engraçadas da sua carreira. É isto que o eleva acima da personagem de Signe em Sick of Myself cuja unidimensionalidade na ilusão da fama a tornava difícil de aceitar enquanto Paul se revela como um de nós em busca do seu lugar no mundo. Tudo graças a Nicolas Cage, o verdadeiro camaleão da representação mundial.
A própria evolução da personagem e do argumento andam de mãos dadas assim como o crescendo de ansiedade no espectador. Aos habituais temas da procura da fama e do efeito das redes sociais na nossa vida Borgli acrescenta a cultura de cancelamento tão em voga na sociedade actual. Na primeira metade do filme parece haver uma sucessão de interessantes curtas de terror, cada uma mais inventiva que a outra, e em que o surrealismo e os medos irracionais de cada pessoa no planeta ganham asas e Paul é um mero espectador. Na segunda metade a história é outra e o terror transforma-se numa sucessão de slasher horror reverentes aos melhores exemplos do cinema mundial e Paul torna-se o vilão colectivo e bode expiatório de todos os males do planeta. É essa espiral de poder e insanidade das redes sociais que acaba por ser o verdadeiro filme de terror. Esse lento descambar numa espiral de ódio é tão subtil que sem ninguém se aperceber, inclusive o espectador, damos por nós no meio de uma multidão de linchamento virtual e fica o pensamento se nós próprios não o fazemos na nossa vida real sem nos darmos conta. O conceito de NÓS próprios, inadvertidamente, sermos os vilões de alguém neste mundo é uma ideia deveras perturbadora.
Apesar de todos os olhos estarem em Cage a qualidade do elenco de secundários é indiscutível com destaque para o trio de publicistas reveladores do estado actual do aproveitamento da fama, interpretados por Michael Cera, Kate Berlant e Dylan Gelula, hilariantes e perturbadores em igual medida. Destaques ainda para a banda sonora minimalista de Owen Pallett assente no seu piano e violino, em contracorrente com os sentimentos impostos, e apostando na melancolia de uma situação tragicamente inesperada.
Com um Nicolas Cage em pleno poder das suas capacidades Dream Scenario é uma sátira sobre o poder da fama instantânea e da cultura de cancelamento nos dias de hoje e mantém quase sempre um equilíbrio perfeito entre o terror surrealista e a comédia do desconforto característicos da obra de Kristoffer Borgli. A ânsia de responder a todas as questões levantadas acaba por esbarrar na necessidade de concluir a viagem pessoal e emocional de Paul, e nem sempre toma as decisões mais acertadas. Ainda assim este é um filme a não perder.