Dick Johnson Is Dead (2020)

de João Iria
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Durante os primeiros minutos desta longa-metragem documental, uma piada inicia uma conversa pequena e fútil sobre a morte, entre um neto e o seu avô. Um momento que surge através da inocência infantil e contrasta essa ingenuidade perante um tópico habitualmente longínquo, com a relação próxima e melancólica que um homem idoso tem nesse finamento. Quando o homem escorrega no chão e as gargalhadas iniciam, ele pergunta à sua filha se conseguiu gravar a sua queda, mencionando, num sorriso rasgado, que sempre quis entrar em filmes. 

Este homem é Dick Johnson e a pessoa atrás da câmara é a sua filha, Kirsten Johnson, a realizadora e co-argumentista deste documentário que explora a morte, a família e a sua relação com cinema, numa espécie de ensaio experimental em que um homem, próximo do seu fim, cria várias possíveis cenas de morte cinemáticas, como se a sua vida pertencesse a uma narrativa fictícia. 

As mortes variam entre simplicidade e exagero; num instante Dick Johnson escorrega pelas escadas e noutro, um ar condicionado cai de um prédio na sua cabeça. Estas ocasiões de humor mórbido procedem numa questão dos objetivos de Kirsten Johnson, e a lógica de forçar um individuo a enfrentar a sua mortalidade para o entretenimento de uma audiência. Uma pergunta rapidamente respondida no primeiro monólogo. 

Como figura principal deste filme, Dick Johnson é carismático, divertido e um bom pai, que alinha na estranheza deste projeto com alegria e curiosidade. A natureza fascinante deste enredo emocional está em observar esta personalidade e a relação pai/filha que existe tanto à frente das câmaras como por trás delas, combinando a criatividade de Kirsten na realização e a resposta e reação honesta de duas pessoas a confrontar um dos maiores medos partilhados pela humanidade. 

Um tópico que acompanha os nossos pensamentos até o último segundo de existência é transformado numa comédia dramática negra que funciona como terapia criativa da parte dos dois sujeitos principais. Cauterizando a sua dor com espetáculos transgressivos, banhados em humor numa exploração humana e intima sobre a forma como processamos o fim.  

Johnson, psiquiatra reformado, compreende que se aproxima um destino semelhante à sua falecida mulher. Mediante estes períodos assustadores, Kirsten informa-nos da experiência da sua mãe e no seu arrependimento em não capturar imagens antes da doença afetar a sua mente. Quando defrontamos esta hipótese de perder as memórias que influenciaram a nossa própria identidade, as imagens capturadas do sorriso genuíno do seu pai invocam a urgência de preservar esta recordação em formato digital. 

Filmagens que seguem um ambiente home video profissional aumentam a profundidade deste enredo, adicionando leves pedaços de surrealismo musical reminiscente de Buñuel. O receio deste documentário cair na sua própria armadilha e se tornar num exercício de maldade e uma tentativa de chamar a atenção do público esvanece com o seu desenvolvimento. 

Nada impede a interrogação do quão real consegue ser um momento se estiver a ser gravado. O fator humano desesperado por alimentar o seu ego, eleva o valor de entretenimento, quando uma câmara se encontra à nossa frente. No entanto, uma verdade está presente nas histórias que visualizamos, ainda que estas estejam manipuladas de forma a criar uma narrativa falsificada. O corpo de um filme é uma mentira e a sua alma é honesta. 

Dick Johnson is Dead é um elemento paradoxal para o género em que se encontra. Os melhores realizadores tomam posse da sua visão, elaborando estas, antes de iniciarem oficialmente a produção. Tudo o que vemos no grande ecrã foi pensado cuidadosamente e detalhado para a sua execução funcionar. Neste ambiente de domínio narrativo, encontramos uma realizadora a sofrer o processo complexo de uma artista a tentar controlar aquilo que não consegue na realidade, a inevitável morte do seu pai.

Este aspeto prático do seu trabalho em realização é reconhecido no produto final, quando quebra a quarta parede e insere os vários takes de narração repetidos, demonstrando que são palavras delineadas com o intuito de criar um filme, contudo provindas de emoções honestas. O ecrã funciona como um espelho mágico para uma realidade eterna, e a sua esperança é que o seu pai resida nesta. Quando atingimos os créditos finais, sentimos uma necessidade de documentar a nossa família para preservar estas memórias e as suas vidas. 

“Tenho o meu céu, aqui na terra, com vocês”, diz Dick Johnson aos seus filhos depois de uma sessão de cinema. São instantes em que a câmara pára de ser a fonte principal da história ou a prioridade de Johnson, que nos impele a compreender que a realidade existe neste mesmo espaço documental e persiste em atingir os dois. Kirsten mencionou numa entrevista que queria manter o seu pai vivo o mais longo possível e de certa forma conseguiu. Dick Johnson está morto mas vive para sempre no cinema. 

4.5/5
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