Diários de Otsoga (2021)

de Pedro Ginja

The Night de Frankie Vally and the Four Seasons abre o filme a alto e bom som enquanto um grupo de pessoas dança livremente ao ouvi-la. Todos parecem em transe e catarse, a viver naquele momento. Este é o dia 22, e nessa altura não sabemos bem do quê. Entramos “cegos” dominados por esta música que fala de um amor do qual não se pode esperar muito e sobre viver libertos de ilusões ou promessas. É preciso olhos bem abertos para não deixar passar nada do que se passa nestes Diários de Otsoga.

No papel, este filme fala de um grupo de amigos – Crista (Crista Alfaiate), Carloto (Carloto Cotta) e João (João Nunes Monteiro) – que se junta para a construção de um borboletário num jardim. No entanto, nas entrelinhas passa-se muito mais. A realidade e a ficção entrelaçam-se e confundem-se.

Filmado em pleno período de pandemia, os momentos de dúvida, incerteza e pânico vão surgindo e, de repente, os três amigos não estão sozinhos, mas sim rodeados da equipa de filmagem que saí do background e entra na tela de cinema. Os momentos de catarse inicial transformam-se, qual borboleta a sair do casulo, nos medos do isolamento e do perigo escondido no contacto com o outro. A própria representação de um actor, e do processo de criação de cada personagem torna-se indistinto da vida real e com o avançar do filme já nem se sabe quem está a actuar ou está simplesmente a viver a sua vida.

É um filme invulgar e não linear, que puxa pelo espectador e o transporta para um passado recente em que nada era certo. Rodado numa quinta portuguesa entre Agosto e Setembro de 2020, estreou em Cannes em Julho de 2021. Agora, em 2022, ver esta película, pós-pandemia, as impressões da nossa realidade actual são bem diferentes. O que na rodagem parecia uma ameaça invisível, implacável e limitadora da criatividade cinematográfica de um ponto de vista, no mesmo filme após 22 dias, temos corpos em contraluz a dançar de noite, como forma de luta, de liberdade e de regresso à normalidade possível. Ainda assim é um momento passageiro, perdido em tantos outros de aborrecimento da vida real no isolamento e no “apodrecer” como metáfora de relações humanas vitimas do lento arrastar do tempo.

Um perfeito encapsular de uma realidade e de um momento no tempo, para este grupo, mas com a confusa mistura da realidade e ficção acaba por perder o espectador nos momentos aborrecidos da realidade e na ficção de um borboletário sem função aparente. Mas sem ilusões, Miguel Gomes – e aqui juntamente com Maureen Fazendeiro – não é, nem nunca foi, um realizador óbvio e com cada visualização do filme encontra-se cada vez mais do que no visionamento anterior, num constante processo de exploração e descoberta.

3/5
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