Dead Ringers – Minissérie (2023)

de Bruno Sant'Anna

Posso dizer, sem medo, que David Cronenberg possui uma filmografia próxima da perfeição. O realizador consegue combinar histórias absurdistas, argumentos complexos com muito entretenimento e um sentido de humor afiado e inteligente. Cronenberg possui um estilo visual e narrativo tão único que se tornou pai de uma das estéticas mais reproduzidas no terror contemporâneo: o horror corporal. Numa questão de minutos, conseguimos identificar se um filme foi feito por Cronenberg, tão forte é a sua marca cinematográfica. Tudo isto leva uma pessoa a perguntar: por qual motivo é que alguém iria mexer em algo que já é ótimo? Bem, é o que tenho estado a tentar compreender em relação à minissérie Dead Ringers, criada por Alice Birch e distribuída pela Amazon Prime Video. A obra tem como base o livro Twins (1971), de Bari Wood e Jack Geasland, e Dead Ringers (1988), uma das longas-metragens mais conhecidas e aclamadas de Cronenberg, e, por mais que esta nova produção tenha as suas qualidades e novas abordagens para com a história, não chega nem aos pés do original.

A história, do filme, é centrada na relação peculiar entre os gémeos idênticos Beverly e Elliot Mantle, cuja ligação é tão intensa que um é a extensão do outro. Os irmãos compartilham tudo, desde a profissão de ginecologista, o mesmo hospital como local de trabalho e até as experiências sexuais. Como as suas personalidades são diferentes, um ajuda o outro a suprir as suas desvantagens. Essa dinâmica atinge o seu fim no momento em que Beverly se apaixona por uma famosa actriz, culminando num processo de emancipação emocional do seu irmão que engatilha a espiral de autodestruição de ambos.

A abordagem de Cronenberg é brilhante, pois transforma uma relação incomum, aos olhos da sociedade, num enredo de suspense. A forma como os gémeos se relacionam entre si e com os outros é tão fora dos padrões da sociedade que as suas atitudes são imprevisíveis e inesperadas. O que muitos podem ver como estranho e identificar como uma dependência emocional anormal, pode ser interpretado também como uma diferente forma de amor, de necessidade de sobreviver num mundo cheio de regras e moralidade. É, ao mesmo tempo, um exercício de empatia e um thriller psicológico angustiante. A atuação magnífica de Jeremy Irons no papel de Beverly e Elliot também eleva toda a experiência, numa das performances mais inspiradas de sua carreira. Apesar de violenta, existe tanta nuance e delicadeza que faz o espectador se envolver com as personagens e com o argumento. É nada mais e nada menos que um clássico, uma aula de como fazer cinema de género.

Na minissérie Dead Ringers, algumas escolhas foram feitas para evitar que a obra fosse um cópia do filme de Cronenberg, adicionando uma abordagem nova à história, mais próxima das conversas atuais sobre machismo, elitismo e violência obstétrica. O género dos protagonistas foi trocado e agora são as irmãs Beverly e Elliot, interpretadas por Rachel Weisz, numa performance também excepcional. A relação incomum entre as gémeas não mudou, apenas existe mais tempo para desenvolver toda a dinâmica entre as duas como também as suas características individuais, trabalho que Weisz faz com maestria. 

Nesta história, as irmãs Mantle abrem uma clínica especializada em ginecologia no intuito de mudar a forma como as mulheres engravidam e passam pelo parto dos seus filhos. O objetivo de Beverly é tornar a experiência menos violenta para as pacientes, porém, Elliot está mais focada em fazer experiências de fertilização que ultrapassam os limites das leis, a brincar com a vida. Para conseguirem financiar o hospital, as gémeas tiveram que abrir mãos de muitos dos seus princípios para ter a empresária Rebecca (interpretada fascinantemente pela actriz, Jennifer Ehle) como a sua principal investidora, uma mulher cuja personalidade é uma personificação do espírito do capitalismo: todo o investimento tem que ter um retorno monetário. Sendo assim, os seus tratamentos são apenas acessíveis a pessoas de classe alta, que podem pagar pelo melhor disponível no mercado.

Existe um romance entre Beverly e a actriz Genevieve, mas a atuação de Britne Oldford é tão fraca que até os showrunners devem ter percebido isso, pois a história foca muito pouco nesta parte. Nunca vi alguém ter uma química tão negativa com Rachel Weisz que, ironicamente, consegue ter melhores interações com ela mesma do que com Oldfort.

Os primeiros três episódios são muito interessantes, com um ritmo ágil que mantém o espectador interessado na dinâmica da maioria das personagens, mas, depois, o argumento perde-se totalmente. O 4º e 5º episódio são um festival de bocejos, com a minissérie focada em subplots completamente esquecíveis e desnecessários. Podemos até referir esses episódios como fillers, descartáveis. A história só recupera com os desfechos dos eventos, muito chocantes, e, ao mesmo tempo, quando retoma a ligação incomum entre as irmãs, que é o ponto mais intrigante da obra.

Tecnicamente, a minissérie é muito competente. Os enquadramentos e composição das cenas são um banquete para os olhos, tendo muitos elementos simétricos e arquitectónicos. O melhor é que estes visuais não servem só como decoração, já que existem muitas rimas entre a fotografia e o argumento. Uma das que chama mais a atenção é no 5º episódio (a única coisa boa dele, aliás), onde uma personagem relata com orgulho as primeiras experiências que deram origem à ginecologia moderna, descrevendo atrocidades cometidas a uma escrava negra com violências repetidas mais de 30 vezes, sem qualquer forma de anestesia. Enquanto ele conta esta história abominável, um jantar é servido, onde um frango assado é completamente destrinchado no prato de um convidado, mostrando a verdadeira experiência da “paciente”. 

Para finalizar, Dead Ringers não é uma minissérie fraca, nem mediana, longe disto. Tem grandes qualidades, assim como tem grandes defeitos de ritmo e de foco em histórias pouco interessantes. Mas criar uma produção baseada num filme que ainda mantém seu status de obra prima do cinema é preciso ter coragem e inovação. Aqui existe coragem, mas inovação? Não, creio que não. É apenas um produto não descartável vindo de uma fase em que as produções visuais norte-americanas estão numa crise de originalidade. Eu vou sempre recomendar qualquer filme do Cronenberg do que qualquer remake ou reimagining que alguém possa fazer das suas obras, sem dúvida nenhuma.

3/5
0 comentário
2

Related News

Deixa Um Comentário