Lembro-me da primeira vez que vi Blue Velvet (1986). Lembro-me da desorientação, lembro-me de sentir que as coisas estavam perturbadoramente fora do lugar. As imagens não eram alienígenas, na verdade podia dizer que eram familiares, no entanto algo dava-me absoluta certeza que não eram deste mundo. Provavelmente até não eram. Um filme passado no mais pitoresco cenário suburbano e que parece viver do lado de lá de um portal para uma realidade aumentada, uma a que apenas David Lynch tinha acesso. Uma que eu detestei profundamente e que rejeitei com todo o meu ser. Naquela altura, o cinema era uma batalha entre a capacidade de compreender e o realizador do outro lado do ecrã a baralhar as peças à minha frente. Não era sequer o facto das peças não se encaixarem, era o facto de nem parecerem peças que pertencessem ao mesmo puzzle. Ainda assim aquela rejeição foi de tal forma violenta que deixou uma marca.
Então Lynch tornou-se, de certa forma, uma pedra no meu sapato cinemático, se assim se pode dizer. Ele que inspirava uma boa parte do cinema que eu gostava, eu não conseguia entender. O problema era exatamente esse. Essa necessidade de querer compreender, de racionalizar arte, de racionalizar o mundo. Quando passado alguns anos voltei a Blue Velvet, foi como se estivesse a ver tudo pela primeira vez. Foi como se na segunda vez eu tivesse visto o filme pela primeira. Antes procurava por coisas que provavelmente nunca lá estiveram, à procura de uma explicação que é de todas as formas secundárias; agora, aceitava aquilo que me era dado: eu via o Blue Velvet que ali estava e não aquele que eu achava que devia ser. Uma lição que iria mudar a minha vida.
É por isso que a perda de David Lynch é tão difícil. A sua marca vai bem além de mera produção cinemática. Na sua eterna generosidade, e reconhecida por todos os dilacerantes obituários escritos por alguns daqueles que orbitaram à volta do artista americano mais influente do século XX, inventou uma linguagem para partilhar connosco os mundos a que só ele tinha acesso. Sessenta anos de carreira, dez longas-metragens, dezenas de curtas, duas incursões na televisão separadas por duas décadas, centenas de quadros, música e livros. Apesar de todo este catálogo, Lynch recusou-se em todos os momentos a oferecer-nos um dicionário, um tradutor do seu idioma para aquele que nós usamos, porque se há algo que é absolutamente óbvio em todos os trabalhos que viram a sua mão, é que para ele a beleza do mundo está em senti-lo, não em compreendê-lo. Ele próprio o diz: “como é que podemos esperar que a arte faça sentido se nós aceitamos que a vida não faz”.
Ainda assim, acho que Lynch era modesto quando dizia isto, o que é curioso porque não foram assim tão raras as vezes que foi acusado de fazer cinema insuportavelmente pretensioso. Por vezes, parecia que ele via o mundo melhor do que todos nós, o bom e o pior deste. O seu cinema tão focado em lutas cíclicas e incessantes entre o bem e o mal dava a ideia que este via o absurdo, o belo e o cruel do mundo, e através de uma câmara, de uma tela ou de uma máquina de escrever arranjou forma de nos mostrar o que via. Corredores negros sem fim, explosões de música, crianças monstruosas, máscaras de oxigénio e salas vermelhas. Laura Palmer, Dale Cooper, Henry Spencer, John Merrick, Diane Selwyin, Lula Fortume, Dorothy Vallens, Harry Truman. Imagens que desafiam os sonhos e personagens de um calor imenso. Todas elas larger than life e todas elas profundamente sentidas, porque num cinema e numa vida cada vez mais cínica, David Lynch sempre foi um farol de honestidade. Tudo o que escrevia era sincero. O absurdo nunca foi usado como escárnio, paródia ou sequer subterfúgio. Todos os psicopatas e figuras perturbadoras que popularam os seus filmes como Bobby Peru em Wild at Heart (1990), Bob em Twin Peaks (1990-1991), Frank Booth em Blue Velvet viram sempre, perante si, heróis de coração honesto no seu caminho. Basta lembrar a forma como o agente Dale Cooper, no dia 24 de Fevereiro, entra em Twin Peaks e imediatamente cria uma ligação tão pura com Harry Truman, o xerife da vila, um homem que, em tudo aparenta, é o oposto de Cooper. Porque para David Lynch o bom das pessoas encontrava-se independentemente de tudo o resto.
No dia em que recebemos a notícia estava a discutir com alguém a questão da palavra “Lynchiano”. A linguagem que criou transformou-se num adjetivo instantaneamente reconhecível e guardado apenas para aqueles que mudaram uma forma de expressão artística para sempre. Mas fui chamado à atenção, e com razão, que ser “Lynchiano” é bem mais que absurdismo e narrativas desconjuntadas. Um bom exemplo disso é The Straight Story (1999). O seu antepenúltimo filme, produzido pela Disney, ironicamente, não tem o cunho de absurdo cósmico que marcaram os filmes de Lynch e, ainda assim, sente-se que é, sem dúvida nenhuma, um filme dele. A paixão pelo Midwest, o bom coração das pessoas que se vão cruzando no seu caminho, um otimismo inabalável mesmo perante uma dor inimaginável.
É verdade, David Lynch é mais do que incongruência ou imagens peculiares. É generosidade perante o mundo e os que nele habitam. É saber que, mesmo que no fim não fique tudo bem, e às vezes efetivamente não fica, há uma eterna esperança que o bem acabe por prevalecer.
“Fix your hearts or die”. Grita ele mesmo em Twin Peaks: The Return (2017). Sejamos melhores então. David Lynch passou 78 anos a mostrar-nos como. É um legado e tanto.