Voltemos a 1984 por um instante. A tour do 5º álbum dos Talking Heads¸ Speaking in Tongues, dá origem a talvez o melhor filme-concerto de sempre com Stop Making Sense (1984), uma produção também ela pensada por Byrne, que começa sozinho em palco armado apenas com uma guitarra e um rádio sem qualquer outro tipo de adereços em palco, e entre músicas, vimos todo o concerto a ser construído à nossa frente, desde luzes, estruturas e, claro, os restantes membros da banda.
Isto traz-nos a 2020, porque American Utopia, espetáculo da Broadway montado por David Byrne, coreografado por Annie B-Parson e trazida ao ecrã por Spike Lee, é a total antítese de Stop Making Sense. O próprio Byrne o menciona numa das muitas intervenções que faz durante o filme, na forma em como quis retirar tudo aquilo que não era necessário do palco porque “nada é mais interessante do que olhar para uma pessoa”. Por isso, todos os inúmeros percussionistas, a guitarrista, o baixista, o teclista e os dois dançarinos vestem um fato cinzento, contra um fundo e um chão cinzento, apenas com os seus instrumentos consigo, sem quaisquer fios ou restrições de movimento enquanto se perdem num bailado tão peculiar que se torna pitores e inegavelmente contagiante.
Esta muralha de cinza abre o espaço para ver o que se passa, saborear a coreografia, o som de cada instrumento e a gigantesca boa disposição em cima daquele púlpito onde o co-fundador dos Talking Heads prega o seu absoluto pináculo artístico.
Por entre os clássicos como Slippery People, Burning Down the House ou I Zimbra, que têm um brilho diferente com os arranjos adaptados ao formato da peça, também fazemos passagem por temas do álbum que dá o nome ao espetáculo como I Dance Like This ou Everyday is a Miracle.
No entanto, há algo diferente em American Utopia. Pouco se assemelha a um concerto de promoção de um álbum, ou pelo menos, o sentimento não é esse. A música dos Talking Heads mudou muito ao longo dos 11 anos de discografia, mas a sua pedra de toque sempre foi David Byrne, o seu tom de voz teatral, o seu olhar desconfortável e observador, como se de o alien se trata-se que, por um acaso cósmico, acabou em cima de um palco a tocar para milhares de pessoas e com uma expressão facial que reflete as palavras de Once in a Lifetime: “how did I get here?”.
E é de certa forma esta personalidade de Byrne, que é difícil expressar por palavras, mas incrivelmente fácil de entender se o virmos em qualquer concerto ou entrevista, que está construída num espetáculo de som, dança e cinema que é a epítome de uma expressão artística. Quem vê American Utopia não só se sente parte do público, como também parece ser levado numa viagem pela mente do vocalista dos Talking Heads, tanto que, coincidência ou não, ao som de Here, Byrne começa o concerto a descrever o funcionamento de um cérebro. Este sentimento de inclusão vem expresso de todas as formas possíveis, seja ela pela diversidade de nacionalidades presentes em palco, pelos momentos em que o vocalista comunica diretamente com a plateia e cita James Baldwin numa mensagem de esperança na mudança ou talvez o momento mais arrepiante do espetáculo em que todos os músicos se livram dos seus instrumentos e dão voz ao hino de intervenção que é Hell You Talmbout de Janelle Monáe, no qual Spike Lee mostra o porquê de ter sido a única escolha possível para realizar esta visão de David Byrne.
Há ainda um momento antes de Everybody’s Coming to my House em que cantor explica que, embora na canção ele receba toda a gente em sua casa, ele mal pode esperar que elas se vão embora. E é aqui que se encontra a única falha de American Utopia. É difícil encontrar algo que, na sua verdadeira essência, faça uma pessoa sentir-se parte de uma tal experiência a acontecer no ecrã, numa comunhão perfeita entre espetador e artista, como se de um diálogo se tratasse em que Byrne se mostra completo e pede-te que faças o mesmo.
E ele tinha razão. Não há nada mais interessante do que olhar para uma pessoa.
Pelo menos neste caso.