Das Neue Evangelium (2020)

de João Iria

(Filme integrado na programação do Festival Futurama)

Na cidade de Matera, em Itália, onde sucederam as filmagens de The Passion of the Christ (2004) e Il vangelo secondo Matteo (1964), uma equipa documental inicia uma pesquisa local para a produção da sua nova longa-metragem. Marcado no cinema pela sua ligação visual com a crucificação de Cristo, este espaço dita, de imediato, a sua importância nas recriações da história do filho de Deus, elaboradas pelo realizador deste documentário, Milo Rau, e pelo ativista político camaronês, Yvan Sagnet, com a adição de uma fascinante e significativa perspetiva moderna.

Em redor desta localização destacam-se ghettos com condições desumanas, principalmente habitados por imigrantes refugiados. Enquanto alguns aguardam resposta sobre o seu estatuto no país, os restantes trabalham como escravos em campos agrícolas, sob o domínio da máfia, desprovidos de escolhas para sobreviver. Nesta obra, duas histórias entram em conexão através dos seus temas sociais: a luta pelos direitos dos trabalhadores ilegais presos num sistema de exploração condenável e a criação de um novo evangelho (A Revolta da Dignidade) que substitui as icónicas imagens de Pasolini e Gibson por uma vigorosa conceção visual cinemática. O elenco dos Apóstolos é preenchido com estes homens imigrantes e a figura de Jesus Cristo na sétima arte é transformada num homem de raça negra, interpretado por Sagnet.

O Novo Evangelho (título nacional) pretende precisamente explorar as palavras de Cristo num ambiente político atual, revelando a realidade devastadora de uma terra intrinsecamente religiosa a desvalorizar as mensagens que prega. Aliás, na construção deste documentário, Rau coloca uma seleção de questões relacionadas com essa experiência ao desligar-se da distinção temporal entre o presente e o passado nas recriações. Uma decisão que permite desvendar as possíveis respostas da sociedade ao regresso do filho de Deus; compreender quem seriam os seus novos discípulos e testar os limites dos cidadãos que propagam a sua fé numa doutrina cujo significado é ignorado nas suas ações e crenças. São perguntas impiedosas que retiram a vontade de lutar por conclusões desmoralizantes; neste sentido a associação entre as duas narrativas adquire um novo valor simbólico. Mesmo que a luta pelos direitos humanos persista eternamente, carrega-se o peso dessa guerra pessoal até ao fim da vida pois os sacrifícios dos avós serão os benefícios dos netos.

Ainda assim, quando o foco de um projeto está em alterar a sociedade e atrair atenção para uma existência escondida ou demonstrar uma perspetiva distinta ao público, a dúvida sobre a genuinidade das suas intenções cresce. Presentes num ambiente obcecado com a apresentação de moralidade invés de viver essa verdadeiramente, inevitavelmente o cinema sofre como consequência desse pecado. A própria posição de Sagnet como Jesus Cristo cria suspeitas de ego inserido nesta produção, contudo, Das Neue Evangelium mantém-se preciso no seu objetivo, retorquindo essas preocupações sem evadir os gritos de raiva dos seus sujeitos ou os seus receios perante estas filmagens.

Inicialmente, as adversidades de interpretar esta figura impactam consistentemente o ativista, contudo a sua consciência da relevância emocional na sua representação, relacionada com raça e cultura, transportam-no até ao sofrimento da crucificação. No terceiro ato, uma última fase de casting influencia esses suspiros e o seu olhar atormentado que desfoca a linha entre ficção e autenticidade. São momentos profundamente desconfortáveis que apagam as incertezas perante o papel de Yvan como Cristo e pontificam a necessidade desta recriação ser executada com este conceito e este elenco.

A história de Jesus foi replicada incessantemente no grande ecrã, passando por demasiadas equipas inconscientes da sua repetição exagerada. Das Neue Evangelium recorda estes artistas deste estado vazio narrativo, empurrando os seus colegas a atualizarem-se nos seus retratos cinemáticos ao comunicar a sua mensagem para dois mundos: a nossa existência e a sétima arte. Durante o documentário existe uma frase que se salienta como a fonte de combate pelos direitos humanos desta comunidade e como o objetivo fundamental de todas as criações artísticas: “Those of you who still don’t get the story of these boys can’t understand their anger either.” Aqui, encontra-se a infeliz verdade da nossa realidade e a urgência de captá-la em câmara. Nas mãos destes criadores, o filme entrega esse espírito.

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