Ambicioso parece uma palavra algo limitada para Tom Tykwer. O corresponsável, em conjunto com as Wachowski, por Cloud Atlas (2012) e o realizador de Run Lola Run (1998) abriu a Berlinale de 2025 com uma cacofonia divisiva que faz de tudo um pouco: cada género, cada tema, cada formato, e de alguma forma consegue aterrar, miraculosamente, com uma graciosidade que parece impossível dada a magnitude do projeto.
A família Engels (claro) – Tim (Lars Eidinger) e Milena (Nicolette Krebitz) e os gémeos adolescentes Jon (Julius Gause) e Frieda (Elke Biesendorfer) – estão à beira do colapso. Ele é um homem da esquerda liberal, preocupado e consciente de um sem número de injustiças sociais, mas que trabalha para um HUB de marketing digital que colabora com multinacionais megalómanas; Milena trabalha num projeto de construção de um centro cultural em Nairóbi com fundos alemães enquanto negligencia a família que tem em Berlim; Jon passa os dias ligado a um jogo de Realidade Virtual, trancado à chave no quarto, sem qualquer ligação ao mundo exterior, e Frieda navega entre festas alimentadas a psicadélicos e protestos performativos sobre o apocalipse ambiental e capitalista. Ninguém se fala, ninguém se toca, ninguém quer particularmente saber uns dos outros, ao ponto de ninguém perceber, durante mais de 24h, que a mulher que lhes limpa a casa está morta no chão da cozinha.
Assim entra em cena Farrah (Tala Al Deen), a mulher que conhecemos na abertura de Das Licht (The Light é o título global), sentada em frente a um foco de luz intenso e intermitente e que parece causar estranhas alucinações. Farrah é a nova empregada doméstica dos Engels e com o seu curioso aparelho luminoso vai expor as fragilidades deste núcleo tão disfuncional.
Talvez a melhor forma de ver The Light é saber que Tykwer é uma das mentes de Cloud Atlas e é possível que a sensação com que se sai do seu novo filme dependa parcialmente da forma como se sente em relação ao seu projeto com as Wachowski. Ainda mais caótico do que a sua restante filmografia, The Light encapsula na brutalidade dos seus 162 minutos o ruído e as contradições que são a existência na era digital. Não são temas novos, principalmente olhando para o panorama cínico que marca o cinema da última década, mas Tykwer, com razoável humor e self awareness, despe todas estas incongruências da existência humana sem fazer pouco das suas personagens. Estes, apesar do seu privilégio e estatuto claro de classe média intelectual ser claramente exposto para todos verem, são tratados com compaixão e de forma justa perante toda a sua complexidade. Tykwer apresenta as suas personagens como pessoas, com falhas profundas e práticas que não se alinham de todo com os princípios que creem ter, mas no geral bem-intencionadas, engolidas no seu próprio ego ou tragédias pessoais o suficiente para se esquecerem do mundo, daqueles que os rodeiam e das razões pelas quais fazem as coisas.
Uma sociedade contemporânea cada vez mais asfixiante, ansiosa e frenética torna o mágico realismo que aparece pontualmente para abalar a, até ali, competente mas pouco excecional apresentação de The Light em algo estranhamente adequado. As suas explosões em números musicais sobre um homem de meia-idade com saudades do seu corpo da juventude ou momentos de puro karaoke ao som de Bohemian Rhapsody, e transições para animação são tão descabidas que encaixam perfeitamente naquilo que Tykwer está a pregar. Ainda assim, estas sequências que misturam mil e um ingredientes que deviam falhar, mas funcionam, não retiram qualquer profundidade dos momentos em que The Light nos quer trazer à realidade trágica da existência, das tragédias humanas que marcam o dia-a-dia, daqueles com muito e daqueles que atravessam o mediterrâneo apenas com a roupa que têm no corpo. O filme de Tom Tykwer é sobre todo um mundo de coisas e outras coisas – culpa de sobrevivente, capitalismo, ansiedade, luto e relações familiares – mas é maioritariamente sobre a necessidade silenciosa que todos temos por conexão. Pelo querer desesperante e quase biológico de sentirmos o outro perto num momento civilizacional em que perdemos a capacidade de comunicar com os demais.
Por muito espalhafato, tristeza, frustração, perda, barulho, música e comédia que The Light possa ter (e tem), este concentra-se na mais elementar caraterística do ser humano: a gravitação em torno do outro. A nossa particular necessidade de partilhar o espaço e a vida com o outro é aquilo que dá algum sentido ao miserável estado a que, em conjunto, chegámos. O peso do quotidiano é demasiado para ser carregado sozinho. A dor, a solidão, a frustração e a saudade são claustrofóbicos sem a presença de uma fonte de luz qualquer que nos faça ver que, na verdade, não estamos tão sozinhos quanto cremos.
Pode facilmente ser dito que, e com certeza será, The Light é louco, cheio de si mesmo, algo irritante, quando não ofensivo, seja pela sua postura perante o privilégio ou a forma como Farrah é apresentada como a mulher com uma história difícil e que irá redimir a família branca com problemas de primeiro mundo. Porém, mesmo que esta leitura não seja descabida, não tem em conta o quanto Tom Tykwer acredita na humanidade e acredita na sua audiência. Que mesmo num projeto que carrega uma ambição absurda, transparece que no fundo, e muito simplesmente, o realizador alemão só quer que olhemos para o lado e reconheçamos a existência do outro. É sincero, otimista e pouco ou nada cínico. Em toda a minha inocência, cacofonias e gralhas à parte, é uma proposta bonita.