A primeira grande estreia pós Covid-19 é da Netflix, mais uma vez a apostar em oferecer liberdade aos grandes realizadores para fazerem o seu trabalho de forma livre, autonoma e no seu maior esplendor. Quem seria um realizador mais relevante nesta altura que Spike Lee, que construiu a sua carreira, focado no objetivo de expor a opressão e dificuldades vividas pela comunidade Afro-Americana.
Quatro veteranos afro-americanos da guerra do Vietname voltam ao país em busca dos restos mortais do líder do seu esquadrão Stormin’ Norm (Chadwick Boseman). No entanto, levam ainda uma missão secreta: recuperar o ouro que lá enterraram 50 anos antes, encontrado durante a missão que acabou por levar Norm.
Ao ouvir Spike Lee falar sobre o que pretendia de Da 5 Bloods, consigo dizer que o objetivo foi parcialmente cumprido. Oferecer a perspetiva afro-americana na guerra do Vietname foi uma coisa que o mundo do cinema, até agora, ainda não tinha abordado – pelo menos a um ponto tão incisivo, diga-se.
A comunidade que representava 10% da população norte-americana, mas que representava 33% dos soldados a combater na “Guerra Americana”, viam-se ainda a lutar pela igualdade no seu próprio país, poucos anos depois do fim das Leis de Jim Crow, enquanto morriam numa guerra que pouca ou nenhuma razão tinha para ter envolvimento americano. Citando Apocalypse Now: “you (Estados Unidos) are fighting for the greatest nothing in History.”
Esse conflito interior provém das cenas de flashback, uma consideravelmente poderosa quando os cinco soldados são informados do assassinato do Dr. Martin Luther King Jr. E ali estão eles, a milhares de quilómetros de distância, numa guerra que não é deles, enquanto a sua casa arde e o seu país lhes cospe na cara. Isto é a facilmente a temática mais densa e interessante do filme e tenho pena que não tenha tido mais foco nela.
Porque Da 5 Bloods muda várias vezes o rumo da história, para linhas bem menos interessantes e que desviam daquilo que –supostamente– devia ser o objetivo. Bastava que apenas um dos plots, os restos mortais ou o ouro, fosse utilizado e para mim o filme teria outro tipo de impacto no fim. Pessoalmente, preferia ver menos a inspiração do guião original em Treasure of Sierra Madre (1948) e mais daquilo que Lee fez na primeira metade do filme.
Estas mudanças na história fazem a peça parecer demasiado longa, não me parece sequer que justifique as 2h30, mesmo com as duas linhas narrativas e retira imenso da experiência geral que se obtém aquando o climax. Ainda assim, uma coisa é certa, a realização de Spike Lee sente-se cada vez mais refinada e ousada, embora sempre um tanto familiar. As mudanças de formato para separar períodos do tempo, a utilização de imagens de arquivo ou fotografias a meio do filme ou até uma escolha pouco ortodoxa no que toca a flashbacks, são lembretes constantes que isto é cinema e não a vida real, mas que isso não torna as histórias ali contadas menos verdadeiras. É uma dicotomia interessante, embora também sinto que sirva para desculpar algumas coincidências estranhas que fazem andar com a história para a frente.
A qualidade do elenco também ajuda, especialmente Delroy Lindo, que interpreta um veterano com PTSD apoiante de Donald Trump quase como que uma manifestação de um dos possíveis resultados que a frustração do povo afro-americano pode ter em si mesmo. É possível virmos a ouvir falar de Delroy pela altura em que começarmos a discutir os prémios da Academia, e faz sentido.
Como sempre, independentemente dos seus problemas, os filmes de Spike Lee continuam a merecer ser vistos e apreciados por aquilo que são (a maioria). São exposições de histórias que tantas vezes ficam esquecidas no espaço e no tempo, que é da maior importância, ainda mais numa altura tão atribulada com esta, que sejam lembradas, pensadas e, esperemos nós, irrepetíveis.