Através do insuportável canto musical do cuco existe um despertar. Literalmente, pois este icónico pássaro é referenciado inúmeras vezes no cinema como um alarme dentro de um relógio. Quando não é utilizado como um sonoro jumpscare ou como uma recordação da fragilidade temporal e da inocência nostálgica, é um símbolo de sedução – Zeus transformou-se num cuco para atrair a deusa Hera, because why not? –, sexualidade e traição. Curiosamente o termo cuckold (cornudo em português) é derivado do nome deste pássaro cujo método parasítico de criar os seus bebés envolve invadir ninhos desconhecidos com os seus ovos, para serem inicialmente cuidados por essas estranhas aves. Basicamente, é um pássaro que sempre marcou o seu canto na cultura e no cinema. Nesta longa-metragem de Tilman Singer, Cuckoo, é uma figura espiritualmente omnipresente. A sua imagem implica um despertar diferente. Um acordar maternal.
Gretchen (Hunter Schafer) segue o carro do seu pai, madrasta e meia-irmã, numa carrinha de mudanças, incomodada com esta súbita transição na sua vida. Isolada desta família, a jovem americana chega aos Alpes Bávaros distante das suas amizades, sem um destino determinado, pressionada a conviver com a sua meia-irmã muda enquanto os seus pais constroem um novo hotel no resort do excêntrico Herr König (Dan Stevens). Ciente da sua dor e solidão, o enigmático empresário oferece um emprego à adolescente como recepcionista para ocupar o seu tempo e oferecer uma necessária distração desta fase. Ainda assim, Gretchen anseia regressar para a sua mãe, planeando a sua fuga às escondidas. Uma intenção interrompida por estranhos acontecimentos neste local que arrastam a jovem para um perigo inesperado.
Cuckoo é um filme que vive primeiramente do seu mistério e quando os seus segredos são revelados não existe uma paragem exacta dedicada a elucidações lógicas. Após pronunciado, é um facto dentro do seu universo que deve ser imediatamente aceite. Noutras palavras, as únicas opções é sair a meio do caminho ou prosseguir nesta jornada. O realizador recusa-se a esticar uma carpete pelo género B de terror, optando por preservar uma seriedade dramática, sincera no seu absurdo, genuína o suficiente para o terceiro acto revelar um surpreendente impacto sentimental e manter o público curioso pelo desenrolar da sua ação e pelo futuro desta família. Dan Stevens encapsula perfeitamente o ambiente desta película. O seu sotaque forte alemão comunica com o espaço e as pessoas ao seu redor como alguém em pleno controlo do seu jardim zoológico, disposto a brincar à apanhada com os seus animais mesmo que implique rugidos mortais ou dentadas ferozes. É puramente divertido na sua ameaça, como um vilão de James Bond aborrecido com o espião que decidiu dedicar a sua reforma a observar pássaros.
Meticulosamente escrito, Cuckoo desperta com o estalar destemido de uma premissa insana e canta com uma ardente voz consistentemente à beira do desafino, mas melodicamente tocante. Existe uma confiança admirável nesta história que aninha a audiência ao seu ritmo e aquece o seu suspense até crescer numa criatura abnormal que voa numa direção imprevisível. O argumento arrisca-se a perder o público mas a sua viagem é definida, ousada e desprovida de receio. Singer nunca tenta pedir desculpas pelo seu nonsense, simplesmente abandona a lógica humana e abraça a lógica cinemática, aventurando-se por uma floresta temática sobre o corpo feminino, reprodução, o conceito de família, maternidade e o abuso de poder masculino perante a mulher. A metáfora funciona como uma guia para as personagens e para o guião. O cineasta exibe consciência deste caminho duvidoso para o espectador comum, portanto adiciona momentos de humor esporádicos relacionados com a estranheza da sua obra que ajudam a libertar o desconforto e a tensão atmosférica. Todavia, nunca surge como um piscar de olhos para a audiência ou como uma vertente condescendente criativa, meramente como uma reação inevitável da sua protagonista adolescente.
Apesar de ser declarada como uma Scream Queen pelo público, esta é uma afirmação completamente desconexa da sua actuação. A sua personagem distancia-se dos gritos comuns associados a esse nome popular da sétima arte. Schafer sangra, chora, luta e sofre mas quase nunca grita, a jovem Gretchen é demasiado rebelde – mesmo na sua inocência – para se enquadrar neste papel, os seus gritos surgem com repulsão, solitude e mágoa, raramente com medo. Para não mencionar o óbvio que para ser uma Scream Queen é essencial ser um nome primordialmente associado ao género de terror (Jamie Lee Curtis, Mia Goth). Schafer é incrível na sua performance, mas acredito que é digna de ser intitulada invés como uma futura Bloody Queen, afinal o sangue funciona como uma metamorfose dramática e corporal dentro deste filme para a sua protagonista. A história de uma jovem que aprende a sangrar pelo cuidado de outra pessoa. O seu rosto quebrado, repleto de nódoas negras, manchando as suas ligaduras brancas com um vermelho potente demonstra a vulnerabilidade que Schafer sente no interior da sua Gretchen, conseguindo estabelecer naturalmente uma conexão emocional com a sua plateia. Ela é o batimento cardíaco de Cuckoo. É a sua interpretação de uma adolescente desprovida de um escape para as suas confusas emoções, mudas dentro da sua família, que permite este pássaro voar.