Crimes of the Future (2022)

de Rafael Félix

Há algo de final em Crimes of the Future. Sim, David Cronenberg está a chegar aos seus 80 e existe uma probabilidade bastante segura que este possa vir a ser o seu último filme, mas não é por aí. O seu mais recente filme parece o culminar de uma carreira que foi construída sob conceitos que desafiavam as limitações biológicas, tecnológicas e psicológicas do ser humano e que agora olham um futuro de possibilidades evolutivas que estão, claramente, além da imaginação dos meros mortais.

Assim, num mundo onde a dor física deixou de existir para a maioria da população, Crimes of the Future centra-se à volta de Saul Tenser (Viggo Mortensen), um artista que vê o seu corpo criar espontaneamente novos órgãos com funcionalidades desconhecidas, posteriormente tatuados e retirados cirurgicamente perante uma plateia ao vivo, por Caprice (Léa Seydoux). Paralelamente, algo sonda e passeia em silêncio por estas performances, algo que envolve um pequeno rapaz com a peculiar particularidade de conseguir digerir plástico.

Várias vezes são discutidos os méritos artísticos que motivam os espetáculos de Saul e Caprice: qual deles é o verdadeiro artista? Funcionalidade ou Emoção? O que é feito da arte feita pela dor num mundo sem ela? Qual a profundidade filosófica inerente à arte em algo que foi criado sem intenção, pelo menos aparentemente, neste caso com os órgãos que aparecem do nada em Tenser? Cronenberg pode querer concentrar-se mais nos temas sobre a evolução do corpo e da sensibilidade, da procura das sensações extremas num mundo onde a dor – como Wippet (Don McKellar) diz a certa altura “os nossos sinais de aviso de perigo” – deixou de existir, no entanto é impossível retirar da equação todas as reflexões de todos os géneros sobre a forma como nos ligamos ao processo artístico. Encontramos Cronenberg a questionar-se sobre o mundo performativo que o rodeia, com iguais doses de humor, cinismo e curiosidade cientifica que sempre pontuaram os seus filmes.

Por isso, não há uma linha de diálogo em todo o argumento escrito em 1998 que não levante uma qualquer questão ou observação pertinente, seja sobre arte, mortalidade, sexo, dor, evolução ou o futuro do corpo humano. Essa talvez seja o seu maior presente envenenado, com a falta de fluidez narrativa e sentindo-se as personagens como meros mensageiros que não esperam receber uma resposta para retornar, Crimes of the Future pode tornar-se demasiado frio e cirúrgico, assemelhando-se a um livro que compila citações extraordinárias porém tem dificuldade em manter a coerência entre elas. O fascínio daquilo que se discute deverá chegar para manter o olhar focado no ecrã mas este está longe de ser um dos trabalhos mais acessíveis do canadiano. É tanto melhor por isso.

Há comparações a ser feitas entre outros filmes de Cronenberg ­­– ainda que este insista que estas não existem conscientemente – e talvez as pedras basilares de Crimes of the Future sejam o design e alienação de eXistenZ (1999) – que Carol Spier, colaboradora habitual do realizador traz com os seus sets e aparelhos que apenas podem pertencer a um mundo onde o humano se desligou da estética exterior e se virou para dentro –, e a fusão e simbiose com a tecnologia de Videodrome (1983) ou Crash (1996). Em termos de estrutura, aproxima-se bastante mais do primeiro com resultados diferentes. Tal como o filme que protagonizava Jude Law, Crimes of the Future é um filme que dá a entender que a narrativa tem um papel secundário com a sua pontual falta de articulação do argumento, cenas descontextualizadas e sobre-exposição já habitual nalguns filmes de Cronenberg (no entanto, para o mestre canadiano, isto não é necessariamente uma fraqueza). No entanto, os temas são explorados de forma mais interessante e ambiciosa do que na enxurrada de sujidade de eXistenZ e há no seu centro um núcleo emocional, que embora não seja prevalente, garante que um filme sobre o futuro e a definição do termo “humanidade” não se esquece de estabelecer que esta é construída por laços sentimentais e não pelo número de órgãos que temos. Saul e Caprice, em duas performances belíssimas de Mortensen e Seydoux – o primeiro a oferecer todo o seu físico – levam-nos para lugares inesperados com temas familiares ao realizador, e apesar de Crimes of the Future ser muito mais um filme de conceitos do que atores, sem eles e sem o trabalho quase perturbado e frenético de Kristen Stewart, dificilmente o guião de Cronenberg conseguia sobreviver ao peso das suas próprias ideias.

Crimes of the Future é sobre tudo aquilo que o génio orgulhosamente canadiano já explorou antes, é verdade, mas há uma grandiosidade quasi épica – que a música de Howard Shore eleva – neste mundo pós-industrial onde Cronenberg decidiu perguntar-se o maior de todos os temas: que será de nós? Se este for o seu último filme, centrá-lo à volta de uma luta sobre a evolução da nossa espécie e de que forma o nosso corpo está profundamente ligado à arte que nos toca, acaba por tornar-se algo extremamente apropriado. A ambição, o humanismo e a inteligência de David Cronenberg dificilmente voltarão a ter igual, e Crimes of the Future fechar com uma referência a La Passion de Jeanne d’Arc (1928) é de uma beleza que tão cedo não voltaremos a reencontrar num grande ecrã.

4.5/5
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