Crash (1996)

de Bruno Sant'Anna

Em certas ocasiões, podemos sentir que o nosso corpo nos limita fisicamente de ter experiências transcendentais. A nossa carne, órgãos e habilidade de sentir dor é um lembrete do quão frágil é o ser humano e o quanto a nossa experiência consegue ser restrita. O realizador canadense David Cronenberg, porém, tem uma visão completamente diferente sobre esse fator limitador. Para Cronenberg, o corpo humano é o aspecto mais interessante da nossa existência; a nossa vida e percepção do mundo gira em torno dele. A complexidade do nosso funcionamento biológico, e a capacidade de suportar os maiores suplícios para sobreviver e recuperar dos piores ferimentos possíveis. Além disso, o cineasta usa a capacidade da linguagem cinematográfica de dobrar a realidade para colocar o nosso físico como motor principal das suas histórias, a sofrer as mais grotescas e impressionantes transformações, quebrando os limites físicos da realidade e representando, por fora, a confusão que sentimos por dentro.

Embora muitas das suas obras sejam conhecidas por essa transformação extrema do corpo humano, como The Fly (1986) e Videodrome (1983), o seu filme mais profundo e autoral é Crash, que é considerado muito mais contido nas questões de violência e gore. Neste, acompanhamos um casal que vive um relacionamento aberto a envolver-se com um grupo de pessoas que cultuam acidentes de automóvel. O que se desenrola na película é uma espécie de evolução da filosofia hedonista, onde prazer e dor podem de facto caminhar juntos, e um abandono dos padrões estéticos que prezam pelo imaculável. Cicatrizes, feridas abertas e desfigurações são vistas com admiração e desejo. São histórias desenhadas no corpo humano que falam sobre as suas trajetórias, traumas e experiências que são compartilhadas entre os membros desse culto.

Existe uma questão interessante no filme sobre a relação das personagens com máquinas. A sua obsessão com acidentes de automóveis e as alterações do corpo após essas colisões é uma forma de desprendimento de tudo o que o ser humano representa na sociedade para exaltar a tecnologia. É buscar calor não só na carne, mas no metal também. Essa distância das convenções sociais para se aproximarem de algo frio e desprovido de sentimentos poderia criar pessoas nefastas e sociopáticas mas, ao contrário, parece que resulta numa maior conexão e afeto entre o grupo. Eles encontram consentimento e amor na violência.

O ritmo e estilo narrativo assemelha a melodramas sexuais da década de 1980, como Sex, Lies and Videotape (1989), um género que muito facilmente tende a cair no esvaziamento da história para focar nas cenas de sexo e nudez. Não é o caso de Crash, pois a sexualidade e a tensão sexual são movidas por outros dilemas morais e existenciais, e são tão importantes quanto os mesmos para desenvolver o destino das personagens até o seu ápice final.

As personagens são complexas e instigantes de acompanhar, com atuações competentes de Holly Hunter, Elias Koteas e do protagonista vivido por James Spader no ápice de sua beleza. Além disso, a fluidez e a liberdade com que estas personagens se relacionam umas com as outras é algo natural, bem desenvolvido e muito à frente do seu tempo. Cronenberg tem uma sensibilidade notável em retratar relacionamentos que fogem das normas do padrão da monogamia e da heterossexualidade, com esse dom sendo perceptível até nos seus primeiros trabalhos, como Stereo (1969).

Crash é definitivamente um clássico do cinema dos anos ’90. A maneira como Cronenberg utiliza a ligação dos humanos com os carros para explorar temáticas como a sexualidade e a violência é icónica, criando inspiração para futuros filmes, como o belíssimo e premiado Titane (2021), de Julia Ducournau. Aliás, o cineasta é dotado de uma criatividade tão rara e única que, numa indústria desgasta em remakes e sequelas, ele continua a ser sempre a referência original.

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