Cow (2022)

de Francisca Tinoco

Cow é novo documentário de Andrea Arnold, a autora responsável por títulos como Fish Tank (2009) e American Honey (2016). O cinema de Arnold é marcadamente provocador e irreverente e Cow não foge à regra, ainda que o incómodo causado possa ser mais difícil de justificar desta vez. 

A exploração da vida de uma vaca, Luma, e da sua cria, Cow é um documentário observacional sem nenhuma narração ou talking-head a guiar o argumento do filme. Este estilo de cinema documental tem uma certa reputação de objetividade, com edição mínima ou qualquer comentário (falado ou escrito, isto é). No entanto, para além do facto do cinema ser sempre inerentemente subjetivo, Arnold assume aqui também uma perspetiva personificada, e por consequência ainda mais subjetiva, ao eleger uma única vaca dentro de uma fazenda de exploração leiteira e seguir a sua experiência bem de perto. O filme permite ao espectador ver o que Luma vê e, aos poucos, sentir o que ela sente.

A primeira crítica a Cow seria, portanto, esta tendência a humanizar ou personalizar uma vaca, numa tentativa mais subtil do que muitos, mas, todavia, presente, de associar emoções e processos lógicos humanos a um animal irracional. O documentário perde, assim, algum do interesse que o formato observacional lhe conferiria em teoria. 

No entanto, seria injusto atribuir a Cow uma mensagem específica, e o filme está muito longe de ser dogmático (uma raridade dentro do género de documentários sobre animais, e um dos seus pontos fortes). Ainda que a leitura mais fácil do filme seria uma condenação da indústria leiteira, a forma como este está construído não tem ligações diretas a esta interpretação. Ao invés, cada espectador irá projetar sobre Cow ideias sobre estas práticas que provavelmente já tinha antes de ver o filme: uns irão sair do visionamento revoltados, outros não encontrarão nada de errado com a realidade apresentada, e a maioria assumirá uma atitude equilibrada entre os dois. Cow permite tudo isto. 

Esta neutralidade tem, contudo, os seus limites. E aqui se insere uma segunda crítica possível ao documentário de Andrea Arnold – a inércia perante atitudes no seu melhor questionáveis e, no limite, totalmente reprováveis. Este tem sido um dos principais fatores de condenação a Cow por parte de defensores dos direitos dos animais. Ao inserir-se por completo na realidade de Luma e se abster de a tentar ajudar, Arnold é acusada de cumplicidade nas práticas invasivas da indústria leiteira e, caso o objetivo do filme fosse realmente criticá-las, de alguma hipocrisia. 

Resta saber se, no cinema, o papel de cineasta e artista se deve ou não impor sobre o caráter humano e moral do realizador enquanto pessoa, fora do seu trabalho. Cow é um filme belíssimo se só forem consideradas as técnicas utilizadas, assim como a construção e métodos criativos altamente originais nele empregados. É um exercício de cinema documental dos mais interessantes dos últimos tempos exatamente por levantar todas estas questões ideológicas e pôr à prova as balizas éticas da prática cinemática. 

Deve um documentário ser mais do que um simples filme? Será obrigatório todos os documentários terem uma mensagem demarcada ou tentativa de mudar a realidade que retratam? Ainda que observando apenas, é possível um documentário ser alguma vez totalmente objetivo? O cineasta tem alguma obrigação moral para com os sujeitos do seu filme? Todas estas são reflexões que Cow proporciona, para além da sua contribuição profundamente informativa sobre o dia-a-dia de uma vaca leiteira que, no melhor elogio que se lhe poderá prestar, não deixará ninguém indiferente.  

3.5/5
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