Cobweb (2023)

de João Iria

Apesar do seu nome não evocar o impacto de Bong Joon-ho ou de Park Chan-wook, Kim Jee-woon é digno de similar atenção, respeito e louvor. O realizador surgiu, juntamente com os cineastas mencionados, durante o Korean New Wave, uma época de revolução cinemática na Coreia do Sul, quando as portas do país abriram à democracia e a indústria cinematográfica expandiu para um nível global. Absolvidos das algemas governamentais criativas, autores irromperam pela sétima arte com uma paixão entusiástica e uma liberdade nunca antes experienciada para pronunciarem as suas histórias ao mundo. Kim Jee-woon desfrutou dessa autonomia para explorar diversos géneros cinemáticos e aderir ao excesso da imaginação humana através das extraordinárias obras I Saw the Devil (2010), A Tale of Two Sisters (2003) e The Good, The Bad, The Weird (2008). A sua primeira longa-metragem, a comédia negra de terror The Quiet Family (1998), exibiu um ambiente peculiar que seria predominante na sua futura filmografia: controlo sobre o caos. Agora, o realizador olha para o passado para uma reflexão cómica sobre a natureza devastadora, violenta e maravilhosa de criar cinema. Novamente presente: a necessidade de controlar o caos.

Na década de 1970, perante uma indústria cinematográfica a descarrilar, um realizador fracassado, Kim Ki-yeol (Song Kang-ho), sonha com um novo epílogo alternativo para a sua longa-metragem finalizada, Cobweb. São viagens nocturnas, adulteradas por memórias e mascaradas como pesadelos, que se infiltram na sua rotina, convencendo o cineasta que este seu filme está perto de ser perfeito, apenas precisa de ser completamente refeito. Uma crença que impulsiona Kim a suplicar à sua produtora por dois dias adicionais de filmagens para finalmente entregar a sua obra-prima. Após ser rejeitado pelos serviços de censura do governo, Kim reúne a sua antiga equipa em segredo para transformar os seus sonhos em realidade, literalmente.

Cobweb ocorre maioritariamente durante estas novas filmagens, dividindo a longa-metragem em duas secções. Cobweb: a visão hitchcockiana do protagonista/realizador, produzida num elegante preto e branco, e Cobweb: o processo de rodagem, retratado a cores vívidas. Kim Jee-woon estabelece uma comédia melodramática divertida acerca do impossível e insano processo artístico de converter um sonho numa realidade cinemática. Kim Ki-yeol é um cineasta solitário que parece existir somente para a sétima arte, encontrando o seu único propósito neste espaço onde o controlo permanece sempre distante atrás de uma janela trancada denominada como imaginação, condenando o artista a uma eterna decepção. Confrontado diariamente com as reações negativas dos críticos e da audiência e uma excessiva comparação negativa ao seu falecido mestre, Shin, um realizador admirado pelo público, Kim Ki-yeol questiona a sua posição como artista enquanto procura recuperar o seu nome, demonstrando que a sua primeira – e única elogiada – obra não foi uma anomalia, e comprovar o seu talento aos seus detractores.

As suas inseguranças e receios movem o realizador a perseguir pesadelos, inconsciente dos seus significados além da claquete, perdendo a sua sanidade enquanto a loucura se transfere do palco para as câmaras. Na verdade, Kim parece mais investido neste aspecto do que na sua desastrosa longa-metragem, recusando-se a compreender o motivo principal das suas assombrações ou do seu vício em comprimidos. Os seus actores envolvidos em traições amorosas, exaustos, confusos com a nova conclusão do argumento, desencantados pela sua visão; um method actor decide encarnar o seu papel de detective fora das filmagens para investigar o secretismo que rodeia estes cenários. Natural, pois a produção enfrenta o seu ambiente anárquico com compromissos inevitáveis diante forças aleatórias, a interferência do governo e da censura e o regresso de uma produtora desinteressada no cinema como expressão artística. A audiência simpatiza com a ambição de Kim e o seu desespero. Apoiamos as suas decisões bizarras mesmo quando avistamos cenas duvidosas, diálogos ridículos, inconsistências na continuidade e actores substituídos por membros da produção cujas aptidões provocam gargalhadas. Ansiamos pela concretização da sua visão num prazo practicamente impossível e pelo seu sucesso no colossal ecrã, conscientes do potente risco e do intenso esforço visualizado entre as chamas. Neste sentido, Kim Jee-woon captura a sensação de ser um criador; de saltar de um penhasco com a esperança de encontrar a sua arte no fundo do abismo.

Song Kang-ho personifica este olhar angustiado com uma excelente performance, evocando uma tristeza patética subtil, avistada nos pequenos momentos vergonhosos, e uma paixão entusiástica carregada nas suas costas, enquanto o elenco secundário – principalmente os que vestem o papel de actores – salientam a atmosfera babélica com interpretações divertidamente over the top e melodramáticas, acentuadas precisamente para estipular uma impressão de aflição no ridículo. É suposto sentirmos o pesar da agonia artística paralelamente com o absurdo anedótico do seu sistema. A brilhante Im Soo-jung persiste nas suas fantásticas transformações, trajando a pele de uma actriz veterana que balança o extremo com o delicado; Krystal Jung liberta-se das correntes do estrelato K-Pop para interpretar uma actriz vedeta cujo talento combate constantemente contra o seu ego. No entanto, a surpresa está em Jeon Yeo-been que rouba o espectáculo como a festiva e animada Mido, uma produtora em ascensão com a aspiração de herdar o estúdio da sua tia, uma personagem que expõe a sua paixão em actos de violência alheia perante os actores e a equipa técnica, e ao embebedar qualquer indivíduo que se oponha contra o projecto. O seu sorriso após filmar um take péssimo é puramente hilariante.

Demasiadas personagens implica demasiadas linhas para uma audiência acompanhar, entre a desordem. O ritmo irregular narrativo consegue afectar o seu progresso emocional adicionando um peso fatigante na sua duração, nomeadamente no seu segundo acto quando a história cai na armadilha da auto-indulgência, repetindo-se em demasia. Uma adversidade comum na filmografia de Kim Jee-woon que ultrapassa ocasionalmente este percalço com uma atmosfera brilhantemente envolvente. Neste caso, a atenção do público é resgatada pelo terceiro acto que recupera o ritmo impecavelmente, envolvendo-se no melodrama com uma faceciosa euforia ardente, resplandecendo com twists tumultuosos e aderindo completamente à sua demência audiovisual. Cobweb sucede primordialmente quando Kim Jee-woon se liberta da necessidade de solucionar ou avançar os inúmeros sub-enredos e simplesmente dança com as chamas, colocando o seu grande plano no caos cinemático, e explorando o significado de ser um artista.

Nascemos com talento, adquirimos talento ou encontramos talento quando abrimos os nossos corpos para a câmara? A teia refere-se ao título da longa-metragem produzida dentro deste enredo, onde segredos e intrigas se cruzam com consequências venenosas, como ao próprio acto de criar um filme. Para Kim Jee-woon, cinema é sacrifício. Uma complexa teia que pode ser ironicamente determinada como um cemitério para o seu criador. Quando os métodos de realização de Kim Ki-yeol são questionados, o cineasta simplesmente responde que como artistas é essencial transmitirem a sua verdade no ecrã. Cobweb representa a sétima arte como um espelho para uma verdade desconhecida; como arrependimento, como uma memória, e como um prolongado acto de ansiedade que termina com aplausos, vénias, elogios, apupos, silêncio ou meramente desinteresse. Olhos alheios observam a obra passageiramente até prosseguirem com as suas vidas; equipas de filmagens concluem o seu trabalho e regressam para as suas casas. O criador continua a criar. Ainda que a sua paixão ofusque o seu olhar, possua o seu sangue e instale a loucura na sua mente, desfazendo o seu corpo na sua própria teia, o criador continua a criar. É inevitável. Faz parte da sua natureza.

3.5/5
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